Conto: Os Manequins da casa de roupa

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Quando algum vagante passava pelos corredores que se estendiam à frente, logo se deparava com a grande profusão de vitrinas do Shoping. Não era um espaço maior do que os outros, ou melhor, mas tinha suas peculiaridades. O fluxo de pessoas adentrando nas lojas era demasiado grande aos finais de semana, mas quando a segunda feira dava início às rotinas de trabalho, o público esvaecia; o que restava durante a maior parte do tempo nos andares superiores era um silêncio estendido, que talvez fosse sobrepujado pelo burburinho das pessoas fazendo compras no supermercado logo abaixo. Acima, como era o projeto de muitos centros comerciais, não havia nada comestível, mas uma profusão de relógios, sapatos, roupas, e até mesmo uma loja com artefatos bélicos da antiguidade.
Era exatamente no terceiro andar, logo após um lance de escadas muito íngreme, que surgia uma loja de roupas pequena e pacata. Não era, como tudo naquele espaço amplo, uma loja excepcional, mas um pequeno cômodo alugado pelos últimos dez anos, com suas prateleiras abarrotadas de roupas, tecidos de todas as cores e tamanhos, gravatas... Ao fundo, onde alguns poucos raios de luz ainda chegavam, via-se uma sombra se movimentando. Seguiu-se o ruído de papelão arrastando-se contra o chão áspero. O som irrompe pelo cômodo e rasga com o silêncio que se havia acomodado até o meio daquela manhã estagnada. A cortina do trocador se move suavemente, e dela sai uma jovem com seus vinte e poucos anos carregando as últimas caixas de roupas que deveria colocar nas prateleiras. Não sentia muito prazer naqueles afazeres diários, de fato, mas o fazia por falta de escolha, afinal alguém teria de pagar o aluguel.

O ronco do motor de um veículo do lado de fora tirou sua atenção das prateleiras, e ela caminhou em direção ao balcão. Sabia que deveria deixar o celular desligado quando trabalhava, mas àquela altura já não se importava mais com o que seu desprezível patrão pudesse dizer. Viu que o relógio digital marcava exatamente “11:53”, mas não havia sinal do manda chuva. Típico...
Já fazia mais de quarenta minutos que saíra para um passeio à luz do dia, mas não voltara; e ela sabia que não poderia tardar em seu almoço para compensar os minutos perdidos. Não, não mesmo. Ele era um homem que gostava de se sentir no controle, de forma que alguns pequenos abusos como aquele eram parte da rotina de Marta.
C’est la vie, alguns diriam, mas ela preferia fazer justiça com suas próprias mãos em alguns momentos de descuido do velho: em um local secreto dentro da loja ela deixava um daqueles romances escondidos. Sabia que aquilo era uma grande estupidez, mas não carregava uma bolsa consigo; e havia sido permanentemente proibida de ler qualquer coisa no expediente quando fora apanhada da outra vez, mas fizera um esforço obstinado para ler o conteúdo sempre que seu patrão estivesse fora. Não lhe restava nada a fazer dentro daquele lugar, especialmente quando conseguia repor todas as roupas vendidas nas prateleiras. Não se arriscaria ir ao esconderijo naquele dia por causa de seu humor sombrio: a natureza feminina tem seus desígnios, e uma vez a cada mês traz os infortúnios e as nuances de temperamento. Não se sentia disposta a uma incursão ao mundo literário antes que comesse algo... Afinal onde estava o homem? Já fazia mais de vinte minutos que seu horário de almoço começara, e ele não havia dado sinal de que apareceria. Desta vez protestaria, certamente.
Mal havia terminado de pensar no que comeria, ouviu os passos pesarosos na escadaria. Logo soube que ele havia voltado de sua caminhada. O obeso homem entrou falando ao telefone, o que imediatamente a levou a acionar o seu piloto automático. Sim, piloto automático é como ela nomeara aquele limbo que formava ao seu redor quando gostaria de evitar ouvir ou interagir com outros seres humanos...  Já era ruim o suficiente ter de convive com um sujeito tão mesquinho todos os dias; e saber do que acontecia na vida dele seria um bônus deveras desagradável.
Um calor surgiu no peito de Marta. Ela abriu a boca para dizer algo, mas não se permitiu. Calou-se e foi para fora sem dizer nada. Passou pela porta da frente e fechou-a atrás de si. Passou pela escadaria e desceu-a sem pressa. Por alguns momentos sentiu vergonha de si mesma, de sua falta de coragem, de sua aparente incapacidade de se impor quando necessário. C’est la vie...
O ar estava salpicado com uma profusão de odores de comida sendo preparada, reavivando a fome dos que por ali transitavam. Marta pensara em começar uma dieta saudável, mas não seria hoje que abriria mão de alguns pequenos prazeres. E foi assim que, despreocupada, saboreou toda a gordura de um sanduíche em uma das mesas. Pretendia comprar um presente para o dia dos namorados que se aproximava, mas se lembrou de que não tinha nenhum (o que colaborou com seu humor sombrio naquele dia). Simplesmente quedou-se ali, sentada na praça de alimentação como se não tivesse mais o que fazer, fitando o vazio. Tédio...
Permaneceu sentada naquele banco pelos minutos e a hora que se seguiram. O tédio havia finalmente sobrepujado quaisquer expectativas. Uma espessa camada de indiferença impedia que se movimentasse para qualquer outro lugar. Quando o tempo acabou, não sem algum esforço, caminhou pelas escadarias até chegar ao seu posto de trabalho. Protestaria caso o homem dissesse algo a respeito de seu tempo a mais de almoço, mas não foi o caso. Dia de sorte, talvez. Ele simplesmente lhe dirigiu a palavra como sempre o fazia:
_Eu vou ter que cuidar de um carregamento essa semana lá no Dolores. _Ia dizendo quando ela entrava pela porta da frente._Eu tô esperando uma encomenda entre hoje e amanhã. Se o pessoal vier aqui, pede pra eles deixarem ali perto do balcão.
Marta não sabia exatamente o que viria a seguir, mas decidiu que não se importava. Simplesmente assentiu com a cabeça e esperou que ele saísse. Naquele momento, a única coisa a se esperar era que não tivesse que fazer força para carregar encomendas pesadas. Levantar as caixas já era um suplício para suas costas. Ela era leve, e seus músculos débeis demais para aquele tipo de serviço.
Do lado de fora, as pessoas continuavam com suas vidas. Um careca extremamente gordo fitava algumas gravatas pela vitrine. Ela quase torcia para que ele desse meia volta e não entrasse pela porta a frente, mas ele veio a seu encontro. Ela abriu aquele sorriso mecânico e começou com seu bom e velho teatro:
_Posso ajudar?
E seria possível outro desenvolvimento da mesma estória? Obviamente um homem que entra em uma loja espera ser atendido por alguém, no entanto a etiqueta lhe obrigava a sempre tomar a dianteira e começar com o diálogo. Aquela máscara maldita que todos os vendedores deveriam usar lhe atormentava particularmente naquele dia. Lutava contra um ímpeto diabólico de virar as costas para o cliente e deixá-lo falando sozinho. Não o fez, é claro. Simplesmente assentia com a cabeça para o que quer que ele estivesse dizendo... Não se tratava de um diálogo entre dois seres humanos, mas um solilóquio. O piloto automático fora ligado novamente...
Após o que pareceu uma eternidade, finalmente chegaram a uma conclusão. Ele comprou uma gravata azul turquesa que combinasse com o seu ENORME terno, e tudo teria sido perfeitamente banal caso os eventos a seguir não tivessem se delineado: ele, em um súbito gesto ousado, disse aquelas palavras que lhe arrebataram do limbo temporário.
_Vou deixar aqui o meu telefone se quiser conversar mais tarde. _Aquilo veio acompanhado de um sorriso.
Ele havia interpretado mal o comportamento de uma vendedora e achado que ela demonstrara algum interesse pessoal. Ele deixou o cartão com seu contato ao lado do caixa registrador. Saiu, criou expectativas, foi-se para todo o sempre.
Quem quer que fosse aquele homem, parecia levar uma vida abastada. Marta, por outro lado, vivia uma vida humilde. Seria essa a palavra? Humilde soava como um eufemismo àquela altura, quando mal dava conta de pagar a gasolina de seu próprio carro. Quando pensava em quaisquer aventuras como no romance que lia, logo se seguia uma repulsa; e hoje não seria diferente. Não tinha o menor interesse em ler algum bilhete deixado por um completo estranho. A solidão era reconfortante naqueles períodos.
O sol passava pela janela e iluminava o corredor ao final da tarde. Aquela sombra que aumentava e engolia o cômodo ao menos lhe trazia alguma paz. Quando se tornou evidente que o velho não apareceria, foi até o trocador e moveu um dos ladrilhos soltos. Lá havia posto uma edição de bolso de um romance barato. Começou a folheá-lo novamente até o final de seu turno. Não esperava que outras pessoas aparecessem para compras até o final do turno, mas caso aparecessem, não poderiam denunciar seu passatempo, afinal nunca (ou ao menos provavelmente não) veriam aquele... Leão marinho?
Marta se pegou rindo da ideia: os bigodes longos, vítimas de maus tratos; a pança saliente e o jeito expansivo a lembravam de um leão marinho. O velho era quase uma caricatura viva. Decidiu que o apelido secreto serviria.
Quando finalmente chegaram as sete horas, trancou a loja e seguiu seu caminho pelas escadas. A padaria de Samuel continuava ali naquele mesmo local, com os mesmos dizeres de sempre: Bakery. Marta se surpreendia com o fato de que a padaria continuava aberta apesar dos dizeres estrangeiros na placa. Os brasileiros tinham essa tendência de ignorar os avisos em inglês, e não parecia que o estabelecimento estava em seus melhores momentos.
 Já no estacionamento, Marta entrou em seu carro. Girou a chave na ignição e partiu. Quando já passava das oito da noite, deitou-se em sua cama. Estava entediada ou frustrada com algo? Talvez um pouco das duas coisas. Desde que chegara à cidade tudo parecia uma espiral decadente, e não havia sinal de melhora com o tempo. Esperava poder juntar algum dinheiro e começar o próprio negócio, mas seu ânimo não lhe ajudava no momento.
Um dia comum. Inutilmente comum.
Tédio...
1

O sol radiante havia feito um intento de irromper por trás da montanha, mas foi suavemente bloqueado. O reino dos céus estava ligeiramente opaco por causa das nuvens que pendiam ociosas. O humor de Marta parecia ter melhorado quando o celular finalmente despertou e ela se deparou com pleno branco do teto de seu quarto. Esperava que houvesse uma mensagem na caixa de entrada, ou qualquer ligação perdida... Qualquer coisa que demonstrasse algum arrependimento serviria, mas como sempre ninguém lhe mandava mensagens. Melhor sorte na próxima...
Quando desceu as escadas e começou a tomar o seu breve café da manhã, percebeu que seu humor estava menos sombrio naquele dia. Talvez fosse ao cinema depois do expediente ver algum filme que lhe distanciasse temporariamente da tragédia de sua vida. Quando saía de casa, o telefone tocou.
_Alô?_E o silêncio perdurava do outro lado da linha.
_Alô, com quem eu falo, por gentileza? _Marta reconheceu o som da voz de algum vendedor.
_Olha, eu não tenho interesse em nenhum jornal. _O silêncio do outro lado da linha confirmava a suspeita de que se tratava de outra obstinada tentativa. _Será que vocês podiam parar de me ligar?
_Nos desculpe pelo incômodo. Bom dia.
Aquela insistência já lhe tirava a paciência há dias. Finalmente teria paz?
Saiu de casa, e notou que faria frio mais tarde. O sol não dava sinais de reaparecer naquele dia, por isso voltou e pegou seu casaco. Quando saía de seu quarto novamente se deparou com seus documentos sobre a cadeira; pegou-os e seguiu seu caminho para o trabalho.
Conforme dirigia pela estrada, notou que os outdoors haviam sido trocados depois da tempestade da semana anterior. Novas propagandas, e um pouco mais de cores. O que lhe chamou atenção foi o anúncio de alguns loteamentos perto dali. Caso não vivesse com tanto aperto, talvez pudesse investir em algo daquele tipo.
Antes que pudesse notar os acontecimentos ao seu redor, acabou por chegar ao trabalho. Por alguma razão, muitas pessoas pareciam ter aparecido para fazerem suas compras no dia. Mães carregando seus filhos barulhentos, crianças com seus brinquedos, adolescentes caminhando com as mãos dadas antes de um término doloroso da relação (era só uma questão de tempo)... Tudo aquilo parecia mais tolerável naquela manhã, ao menos. Tentaria não lançar sua amargura em todos os seres humanos que encontrasse. Tentaria.
Quando chegou à loja, abriu-a. Como não teria de se preocupar com o Leão Marinho, deixou o livro dentro de uma gaveta do balcão e começou a esperar que alguém aparecesse. Pessoas entraram, pessoas saíram; pessoas compravam, pessoas desistiam de suas compras e saíam usando o bom e velho argumento de que procurariam por mais algumas coisas antes de voltarem. Ela sabia que não voltariam. Era sempre a mesma ladainha...
O fluxo dos acontecimentos comuns foi interrompido, no entanto, no meio daquela mesma manhã nublada: alguns homens haviam trazido caixas de papelão grandes demais. Marta logo pensou que teria de carregar todo aquele conteúdo para os fundos, mas parecia algo de diferente.
_Onde eu posso deixar as outras?
O homem diante dela buscava com os olhos outro canto em que pudesse descarregar a carga, mas havia uma paisagem densa de cabides e suportes de roupas no caminho. Marta logo mostrou o canto mais adequado.
As caixas foram depositadas em um canto mais afastado da loja. Logo que saíram os carregadores, ela não se conteve e foi até o lugar para bisbilhotar o que quer que fosse. Infelizmente não havia nenhuma indicação ou etiquetas visíveis que lhe fornecessem informações do conteúdo das caixas. Teria de esperar para descobrir do que se tratava, evidentemente, apesar de que o cheiro que emanava de todas era de velharia, de resíduos e poeira. Como sempre, o Leão Marinho havia comprado coisas para a loja por um preço muito menor pelo fato de serem velharias, materiais usados há muito tempo. Não podia culpa-lo, afinal os gastos com uma loja eram grandes.
Depois de algum tempo percebeu que havia uma etiqueta na caixa menor, mas havia perdido o interesse e voltou para seu trabalho. Quando ninguém apareceu, novamente começou a folhear o romance e esperar que o tempo passasse. A estória era genérica demais, e a leitura fluía insuportavelmente lenta daquela vez. Ela pensava seriamente em abandonar a leitura quando foi interrompida.
Um farfalhar sublime de papel invadiu seus sentidos. O ar lhe escapou dos pulmões e seu coração disparou, bombeando sangue com um pouco mais de vigor. Ao que parecia, o som de algo se rasgando vinha de alguma das caixas no outro canto, mas Marta não se sentia impelida a verificar de perto a origem dos ruídos. Com algum esforço, saiu de trás do balcão. Aproximou-se das com cautela. Sentiu seu próprio coração palpitando na medida em que tocava uma das mais altas. Sentiu a superfície do papel deslizando por seus dedos, fitava as saliências e os relevos mais altos de todas as caixas, buscando algum movimento, mas não encontrou nada além de um pequeno adesivo com o endereço de origem na menor. Ela não temia a ideia de assombrações ou de espectros de qualquer gênero, mas tinha alguma experiência com o que acontece com equipamentos antigos: ratos poderiam facilmente ter invadido as caixas em algum porão; e essa era, afinal, a ideia aterradora. Marta simplesmente odiava aqueles animais. Sua imaginação crescia, e ela conseguia imaginar roedores grotescos acinzentados rasgando seu caminho pelo papel, escondendo-se nos cantos mais escuros da loja, roendo fios e esperando pela hora mais propícia para lhe morder ou lhe transmitir alguma doença.
Afastou-se das caixas com alguns arrepios e um sentimento de repulsa. Não era paga para lidar com aquele tipo de coisa. Esperaria que o Leão Marinho cuidasse de seus afazeres quando voltasse. Ponto final. Voltou para o seu romance, e teria continuado caso não fosse...
...Novo ruído alguns segundos depois. O coração lhe saltou no peito com mais força daquela vez. Interrompeu o passo e foi até os fundos da loja para pegar a vassoura. Se tivesse de travar uma guerra contra roedores, preferia ter algum equipamento para defesa.
Quando se aproximou da caixa novamente, sua tez se contorcia e sua respiração se exasperava. Imaginava que aquilo parecia uma ridícula versão moderna de Don Quixote de la Mancha, lançando-se contra um inimigo imaginário. Deu algumas estocadas com a vassoura na caixa, mas não obteve nenhuma resposta. Sua inquietação logo deu lugar a uma calma superficial, que seria interrompida por qualquer outro ruído. Talvez o papel tivesse se rompido por causa do conteúdo, e ela continuava a imaginar coisas por ter medo. Sim... O medo lhe levava a enxergar o que não era.
   Prestou atenção em uma das caixas, e viu que o endereço era do bairro que o velho havia mencionado no dia anterior. Dolores. E alguma coisa lhe vinha à mente quando pensava naquela região afastada do centro. Teria sido alguma reportagem no jornal de semanas atrás? Não tinha certeza.
Ouviu-se um ruído estridente na sala. Marta voltou-se para trás com um sobressalto e teve que usar toda sua força para conter um grito. Quando o pânico finalmente lhe abandonou, ela se dirigiu até o telefone da loja e o atendeu.
_Alô?
Esperava novamente um silêncio profundo, mas...
_Marta?_A qualidade da ligação era das piores. Que música era aquela no fundo?_Eu não vou conseguir chegar mais cedo hoje. Vou ficar preso aqui.
Ela finalmente entendeu do que se tratava. Era a voz do Leão Marinho, “preso” em algum lugar. A música o denunciava, por mais que estivesse abafada por alguma porta ou o que quer que fosse.
_Certo.
_Você pode fechar a loja e ir almoçar tranquila. Se eu conseguir terminar com tudo aqui até o final da tarde eu vou até aí pra ver se as coisas chegarem direito e...
_Chegaram. _Ela interrompeu._Eu posso deixar ali no fundo mesmo?
Silêncio por algum tempo.
_Me desculpa, Marta. Não entendi.
Ela apertou o telefone contra o ouvido. Repetiu a mensagem com veemência.
_Ah, sim, sim!_Ele havia entendido._Pode deixar lá atrás que depois eu cuido de tudo.
Despediram-se e desligaram o telefone simultaneamente.
Como toda jovem perspicaz, ela havia percebido alguns sinais naquela ligação. Já fazia algum tempo que ela suspeitava do velho. Diziam as más línguas que estava se envolvendo com alguém que não deveria. Uma mulher casada daquele mesmo shoping. Não que fosse da sua conta, mas ela percebia quando algum homem mentia. Eles basicamente faziam aquilo o tempo todo; principalmente em uma relação. As incursões do Leão Marinho cada vez mais faziam sentido àquela altura. Ela não conseguia compreender como alguém o suportaria a ponto de ter uma relação às escondidas.
Não pensou mais naquilo por algum tempo. Quando seu horário de almoço veio, ela saiu para comer alguma coisa. Decidiu que estava com coragem o suficiente para experimentar um pouco da culinária oriental naquele dia, e foi até um dos poucos restaurantes do gênero no shoping. O gosto das algas não era lá dos melhores, mas era tolerável caso não houvesse nada mais a se comer. Aquele suco de uva deveria ser chamado de açúcar enlatado, pois fora a bebida mais adocicada que provara em muito tempo.
Os fregueses chegaram aos montes naquele dia durante a tarde que seguiu. Infundiu-se uma inquietação até as 16:00 horas, quando finalmente as pessoas seguiram seu caminho e os corredores permaneciam vazios. Ela guardou o romance na bolsa. Imaginava que o velho chegaria a qualquer momento agora... E se passaram vinte ou trinta minutos até a hora que chegou. Contemplou as caixas com crescente satisfação e pediu ajuda Marta para abri-las. Ela o ajudaria, mas não sem alguma relutância: ainda temia o ataque de roedores. Não era um nome de filmes de terror formidável? O taque dos roedores malditos II, a vingança...
Ele agarrou um estilete e começou a rasgar os adesivos. Não sem muitos ruídos desagradáveis e um esforço razoável, conseguiram retirar o conteúdo da primeira caixa. Lá encontraram três partes de um manequim masculino. Parecia antigo, e exatamente como Marta adivinhara, coberto com uma espessa poeira. Agora, ao menos, fazia sentido o porquê dos ruídos dentro da caixa: as partes da figura masculina pressionavam o papelão.
A seguir, iniciaram novos esforços para tirar os demais manequins de dentro das caixas. Um era parecido com o primeiro, divido em três partes: a parte superior do tronco, os quadris com as pernas, e a cabeça. Este último, no entanto, era feminino.
O último dos gigantescos bonecos de plástico era outra versão feminina, mas do tamanho de uma criança. Todos foram levados para a porta dos fundos da loja. Lá deveriam receber alguns cuidados básicos. Marta deveria passar um pano úmido em todos e retirar o excesso de poeira, enquanto o Leão Marinho deveria jogar todo o resto do papel no lixo mais próximo.
Ela não demorou muito para começar com seus afazeres. Começou pelo primeiro manequim e, após encher um dos baldes de água, começou a passar um pano pelos braços e pelo tronco. Não se sentia confortável, no entanto. Havia algo de inquietante em um boneco como aquele... No lugar da face havia uma superfície branca e fria. Parou de pensar bobagens e continuou sua limpeza. Quando terminou com o manequim, começou a trabalhar no modelo feminino. A mesma face lisa e desumana naquele. Já passava das cinco da tarde quando finalmente conseguiu terminar de limpar os bonecos e montá-los da maneira correta. Eles haviam encontrado algumas dificuldades em encaixar algumas das partes, mas ao menos eram muito mais leves do que pareciam a princípio. O que veio a seguir foi o mais fácil: deveriam por algumas roupas do tamanho adequado para que se chamasse a atenção de compradores potenciais.
No modelo masculino puseram uma elegante camisa preta e um casaco marrom. As calças jeans combinavam com os sapatos, mas a face lisa e desumana era um elemento desconcertante quando se observava todo o conjunto. A modelo feminina maior foi enfeitada com um vestido amarelo (cafona) e um chapéu que pouco combinava com o todo, mas ela não daria sua opinião... Não era este seu papel. Por fim, quando terminaram de vestir o modelo menor com um vestido estampado, o velho foi beber alguns goles de água. Ela se surpreendeu com a energia que teve de desprender para montar aqueles bonecos e vesti-los. Seu expediente havia acabado, finalmente. Sentia uma vontade terrível de deitar-se em sua cama e não sair de lá até o raiar de um novo dia.
_Viu, eu vou indo agora pra casa...
O Leão Marinho não protestou. Ela saía quando ele lhe chamou uma última vez.
_Só uma coisa. Você pode deixar o seu telefone em algum papel ali perto do caixa? Eu posso precisar da sua ajuda nesse final de semana. Eu pago hora extra.
Algum dinheiro a mais não lhe faria mal. Aproveitaria a generosidade do velho aquele dia. Não tinha nada melhor para fazer no domingo de uma forma ou de outra. Foi até o balcão, e se deparou com o bilhete que lhe fora deixado pelo obeso freguês algum tempo atrás. Ainda não tinha curiosidade de ler o conteúdo. Ao invés, virou-o para o outro lado, onde havia uma face branca. Escreveu seu telefone rapidamente.
_Mário, eu deixei o telefone aqui no cartão perto do caixa. Até amanhã.
Doce liberdade. O cheiro da fumaça do escapamento de outros carros era um perfume naquele momento. Ela poderia desfrutar de algum seriado em casa, ler o quanto quisesse ou escutar a canção melodramática que quisesse. Dirigiu despreocupadamente para sua própria garagem, calou o rugido do motor do veículo e o deixou em seu repouso ali mesmo.
Começava a ficar frio demais depois das sete horas. Buscou algumas coisas para seu banho reconfortante, e ligou a ducha quente. A água em contato com sua pele foi uma das melhores sensações que sentira em tempos. Embrulhou-se em sua toalha e caminhava em direção a seu quarto quando o telefone de sua casa ressoou do outro lado. Correu até a cozinha e tirou-o do gancho com um movimento rápido.
_Alô?
Do outro lado da linha só conseguia ouvir estática. O leve barulho de algo se arrastando pôde ser ouvido, mas nada além.
_Alguém aí?
Quando se cansou de esperar respostas, desligou o telefone. Notou que ao lado do bloco de notas havia uma pequena boneca rosada. Havia ganhado aquilo de presente daquele desgraçado algum tempo atrás. Foi até o lixo e jogou o brinquedo fora, esperando não se arrepender de tê-lo feito no dia seguinte. Quase rezava para que nenhum vendedor lhe incomodasse no dia seguinte.

2


Nos dias que se seguiram, nada de extraordinário viria a ocorrer na loja. Fregueses apareciam e iam-se, e ela havia observado um aumento no número de vendas na última semana. Por alguma razão, o Leão Marinho havia permanecido por lá mais tempo antes do final de semana, e havia pagado as horas extras do trabalho no domingo. No dia de seu pagamento ela teve mais alguns trocados, e talvez comprasse uma câmera ou algo que desejasse nos próximos dias.
Foi na terça feira, no entanto, quando estava novamente sozinha e perto do fim de seu expediente que percebeu que alguma coisa havia saído errado. Foi até seu esconderijo secreto buscar o romance que pretendia terminar de ler, mas quando moveu o ladrilho de lugar, não o encontrou. A princípio pensou que o havia esquecido dentro de sua própria bolsa, mas não havia levado nenhuma bolsa de novo. Na realidade, se perguntava por que continuava escondendo o romance naquele local, afinal de contas. Poderia simplesmente coloca-lo dentro de uma bolsa como qualquer mulher normal faria, ou debaixo do balcão... Não. Preferia deixá-lo em um local seguro. Que chamassem de uma mania estranha, mas preferia deixar o romance por lá, onde certamente o velho não encontraria. Foi até sua bolsa no balcão, mas não conseguiu encontrar o romance em parte alguma. Despejou todo seu conteúdo no chão, e começou a vasculhar o fundo com pouca esperança. Começava a temer o pior. E se ele houvesse encontrado o livro e o tivesse levado embora? Talvez estivesse jogando com ela de alguma forma? Ao que tudo indicava, parecia que sim. Tinha certeza de que havia levado o livro para a loja naquele dia de manhã, e o deixado havia debaixo daquele ladrilho como de costume, mas obviamente alguma coisa havia saído errado em seus planos. Talvez o tivesse derrubado em um lapso.
Caminhou pela loja por alguns momentos, observando se havia algum rastro no chão ou qualquer coisa que lhe desse alguma pista, mas desistiu logo depois de percorrer toda a extensão do cômodo. Procurou na sala dos fundos, onde havia limpado os manequins. Mesmo lá não conseguiu encontrar nada. Rendeu-se, por fim. Foi até o caixa registrador, terminou com suas últimas incumbências, e saiu pela porta da frente. Antes que a trancasse, no entanto, fitou um dos manequins e notou algo de estranho: dentro da blusa preta do modelo masculino havia uma grande protuberância. O que diabos seria aquilo?
Quando retirou a blusa do boneco, um objeto caiu pesaroso no chão. O baque lhe assustara um pouco, mas quando observou o que havia caído, encontrou seu livro. O que aquilo queria dizer? Puxou ar para os pulmões e tentou se acalmar. Se lembrava perfeitamente de ter levado o livro consigo na hora do almoço, e gastara boa parte lendo o material depois de ter saboreado sua refeição. Não era possível que o velho houvesse feito alguma brincadeira depois daquele momento, por que afinal de contas ele não havia ficado na loja na parte da tarde; saíra para dar um de seus passeios, provavelmente com a amante, longe dos olhos acusadores de uma sociedade. Ela havia deixado o livro debaixo do ladrilho, mas alguém o havia tirado de lá.
Por um momento, por alguns breves segundos, imaginou algo assombroso, mas logo afastou aquele pensamento fantasioso de sua cabeça. Não era possível. O mais provável era que aquele moleque barulhento que aparecera à tarde tivesse feito a brincadeira. Não havia outra explicação para aquilo. Não havia necessidade de criar paranoias. Ponto.
Decidiu que era hora de seguir seu caminho novamente. Precisava de um banho quente antes que congelasse. Dirigiu rápido para sua casa, e quando chegou, logo se despiu e derramou e apreciou cada gota de água quente em seu corpo. Quase escorregou quando saía do box para pegar sua toalha, mas conseguiu manter o equilíbrio enquanto praguejava. Ia em direção ao seu quarto para pegar sua camisola quando o telefone tocou pela enésima vez. Correu até a cozinha e o agarrou. Quando o tirou do gancho, novamente aquela estática continuava lhe incomodando. Nenhuma voz. Só o som, muito abafado pela estática, de algo se arrastando.
_Quem é? Se você não para de ficar me ligando, eu vou chamar a polícia.
Bateu o telefone com força no gancho. Não queria ser incomodada novamente aquela noite. Ligou a TV, mas antes que pudesse ver qualquer programa, o telefone toca novamente.
_Eu já falei pra você parar de me ligar!_Gritou com alguma força.
_Filha? Aconteceu alguma coisa?
Aquilo foi um balde de água fria. Sua mãe tinha ligado mais uma vez.
_Me desculpa, mãe. Um vendedor continua tentando me vender umas coisas que eu não quero. _Amenizou a aspereza em sua voz.
Quando dormiu naquele dia, não pôde deixar de se sentir inquieta. Esperava que encontraria com seu patrão de manhã, e que escutaria toda aquela velha ladainha sobre estar plenamente concentrada no trabalho, mas não tocaram no assunto. Ela, após a partida do Leão Marinho, dedicou-se a empilhar algumas roupas nas prateleiras como era costumeiro, mas não conseguia deixar pensar naquela ideia problemática que lhe surgira no dia anterior. Algo lhe incomodava, mas não queria mencioná-lo diretamente. Sabia que se o fizesse seria uma passagem só de ida para as terras da loucura. Procurou se concentrar em outras coisas; estava desesperada por isso.
No dia seguinte, depois de tudo ter corrido perfeitamente bem, não encontrou razões para se preocupar, assim como no próximo. A semana passou sem maiores problemas. Na próxima segunda feira se sentiu confiante novamente, e levou um novo romance para o trabalho. Pretendia lê-lo com mais cautela desta vez, e o deixaria fechado na segurança de sua bolsa. O velho chegou às 11:30, e ela saiu para o almoço. Tomou cuidado para não demonstrar quaisquer sinais de fraqueza durante as horas que se seguiram.
Pegou-se pensando que preferia a companhia de Mário a ter de ficar sozinha na loja, mas não o demonstrou abertamente. Sabia agora o tipo de homem que era quando ele havia chegado à loja com uma pequena marca de batom na camisa. C’est la vie. Ele era um cachorro como todos os outros. Homens são mentirosos natos.
Foi até a porta dos fundos, e lá usou o banheiro escuro. Precisava de um pouco de água no rosto. O bom e velho autocontrole lhe faria bem naquele momento. Respirou fundo, e ouviu alguns passos do lado de fora e o burburinho de pessoas passando por perto. Não se sentia plenamente disposta a iniciar uma conversa amigável com pessoas que evidentemente não comprariam nada, mas se esforçou para cumprir com seu papel da maneira mecânica como o fazia sempre que era necessário. Saiu abrindo o sorriso de sempre e já preparava seu pedido de desculpas, mas...
Deparou-se com a loja vazia. Tinha certeza de ter ouvido passos dentro do cômodo, mas não havia ninguém ali além dela própria e... Aquelas coisas. Foi até o balcão e se sentou no banco, contrariada. Depois de alguns momentos, começou a ler um livro mais interessante do que os últimos três, e em pouco tempo se distraiu. Teria continuado lendo o material caso um freguês não tivesse entrado. Um jovem impetuoso e de olhos claros buscava uma camisa nova para a formatura.
_Eu não sei se combina com... bla, bla bla... _Piloto automático. O limbo era poderoso àquela altura. Ignorou-o completamente.
Sentia-se animada com a leitura que viria, mas quando fitou os manequins mais uma vez, notou que algo diferente. Demorou-se observando todas as formas humanoides antes de perceber que o chapéu do modelo feminino mais alto havia desaparecido. Onde teria ido parar?
Novamente se viu refazendo os passos da outra vez. Percorreu a loja com os olhos, mas não conseguia ver nenhum sinal do chapéu. Teve a ideia de ir até o trocador de roupas, e lá, depois de uma busca que lhe causava sufoco, encontrou o chapéu abandonado em um canto. O coração movia-se alucinadamente em seu peito agora, o ar era cada vez mais ralo e sua respiração era difícil. Resfolegava e lutava para manter-se controlada. Saiu do trocador, e sentou-se no banco novamente. Respirou três ou quatro vezes. Depositou o chapéu naquele odioso manequim, não sem algum desconforto, voltava para o balcão quando notou que o pequeno manequim estava voltado para o lado contrário.
Sua pele empalideceu. Aquilo foi demais para ela. Despencou sentada no chão, lutando para não entrar em pânico.  Se aquilo era algum tipo de brincadeira, já passava dos limites. Precisava de espaço e precisava de explicações antes que perdesse a sanidade e começasse a chutar tudo o que visse pelo caminho em seu desvairo.
Quando finalmente seus olhos pararam de lacrimejar, tomou coragem e recolocou o manequim no lugar. Não sairia de trás do balcão a não ser que aquilo fosse necessário. Permaneceu sentada na mesma posição por muito tempo. Quando trancou a loja e seguiu seu caminho, sentia como se um peso tivesse sido tirado de suas costas. O ar se tornava mais leve.
Em casa, tomou se banho, ligou a TV. Os programas não pareciam satisfazê-la da mesma maneira de antes. Apesar de estar inquieta com os acontecimentos do dia, ainda se recusava a admitir o que havia pensado...
Justamente quando pensa que as coisas não poderiam piorar, o telefone ecoa estrondosamente na cozinha.  Seria algum tipo de punição divina? Quando caminhava naquela direção, era como se tivesse o peso do mundo nas pernas, e uma lentidão torturante contaminasse tudo ao seu redor. Finalmente atendeu a chamada. Sua voz estava mais fraca daquela vez.
_Alô?
Não se surpreendeu quando ouviu novamente a estática. Uma lágrima percorreu os relevos de seu rosto e pendia de seu queixo.
_Por que você não me deixa em paz?
Um som peculiar lhe chegou aos ouvidos em seguida: o som de algum objeto caindo e alguns ruídos metálicos em seguida. Era difícil de dizer. Foi o limite... Bateu o telefone com força. Arfava em busca de ar, e mais lágrimas agora desciam por seu rosto, marcando a pele.
Cambaleou até o bebedouro. Sua mão estava trêmula demais para pegar o copo que havia enchido de água, mas tentou assim mesmo. Respirou fundo mais uma vez, e tentou levá-lo até sua boca, mas ele despencou no chão. Estrondoso e ecoante, o copo rompeu-se em mil pedaços no chão da cozinha. Ela fitou os cacos espalhados pelo chão. Completamente destruído, disperso. Não aguentou mais um segundo e ali mesmo, no chão da cozinha, se choro irrompeu.
Sua vida era miserável. A quem estivera tentando enganar aquele tempo todo? Não gostava do trabalho, sua relação fora medíocre, sua relação com a família era no mínimo frígida, as contas a pressionavam cada vez mais. Aquelas quatro paredes ao menos guardariam o segredo. Seu sofrimento era propriedade sua, e de mais ninguém. Foi para a cama sentindo que havia atingido o fundo do poço.

3


Fazia sol naquele domingo. Não precisava entrar naquela loja maldita o dia todo. Tinha prometido a si mesma que não permitiria que seus pensamentos lhe conduzissem para mais uma espiral decadente no final de semana, mas por alguma razão havia se arrastado até aquele lugar. Uma brisa fresca bateu em seu rosto cansado. Arrumou seus óculos no rosto e decidiu que continuaria com aquela loucura.
Não havia sido difícil encontrar as informações que precisava. Bastava verificar as notas de compras realizadas pelo Leão Marinho durante o mês passado e o retrasado, e foi assim que havia tentado descobrir onde se encontrava o endereço de compra, mas não encontrá-las facilmente. Felizmente o velho era preguiçoso demais para jogar o lixo em outro lugar, e ela acabou encontrando alguns retalhos no cesto de lixo da loja. A etiqueta denunciava a posição do local de origem daqueles bonecos amaldiçoados. Avançou mais alguns passos pela antiga escola e esperou por alguns momentos debaixo da sombra de uma árvore grande. A escola estava ali, mas não sabia qual direção seguir após ter chegado até aquele ponto. Foi até a pequena praça do local, e a placa da rua anunciava:
Rua Rodrigues Alves
Seguiu pela rua abaixo, mas percebeu, pela contagem dos números, que ia pela direção errada. Virou para a esquerda e recomeçou sua caminhada. Sabia que estava na rua correta, mas não tinha certeza do que esperar.
Quando finalmente chegou ao número 1.313 teve uma surpresa: o local havia sido consumido em chamas. Poucas partes haviam sido poupadas do fogo, mas obviamente havia algum tipo de trabalho de restauração sendo realizado no local; o sabia pelo fato de as escadas ainda estarem ali, entre outros equipamentos de construção.
De repente tudo lhe voltou à memória com um golpe violento. É claro! O local havia sofrido o incêndio semanas atrás, e essa fora a reportagem que ela lera no jornal, mas não dera atenção, pois coisas daquele gênero aconteciam frequentemente pelo país. Alguma cosia havia acontecido ali, mas o que exatamente?

4


 Voltou para a casa e começou a buscar pelo jornal que havia deixado em algum lugar da sala de estar. Irritou-se quando não conseguia encontra-lo junto com as revistas, mas quando se voltou para o rádio, viu que as páginas jaziam ali ao chão. Agarrou os papeis com força e levou-os para a mesa. Encontrou o que queria em uma das últimas seções.
“...o fogo consumiu a casa no jardim Dolores. Segundo a investigação da polícia, o proprietário da loja havia iniciado o incêndio no local para que pudesse usufruir do seguro, mas acabou sendo pego pelo fogo...”
É claro... Ela havia ouvido boatos de que o proprietário havia queimado propositalmente a loja em um momento anterior, e o seguro havia descoberto que se tratava de um golpe: ele havia iniciado o incêndio. As palpitações em seu peito aumentaram na medida em que ligava os pontos.
Seu queridíssimo patrão havia comprado os manequins daquela mesma loja incendiada para poupar dinheiro. Manequins de uma loja que havia pegado fogo e matado o proprietário.
Pensamentos sombrios passavam por sua mente. E se aquele homem tivesse se deparado com algo que não conseguisse lidar? E se tivesse iniciado um incêndio para se livrar de...
Diga.
E se ele... Por que continuava sendo tão difícil formar aquela frase mentalmente? Ao que se pegava?
Diga...
E se ele quisesse se livrar daqueles bonecos malditos? Era loucura pensar daquela maneira? Ela sentia-se uma perfeita lunática proferindo aquela frase, mesmo que fosse mentalmente. Lojas e casas pegam fogo o tempo todo, e não significaria que um homem deseja por fim em algo. As possibilidades de que fosse qualquer outra coisa eram muito grandes, o que lhe fazia sentir-se louca de pedra. Completamente perdida em meio a um turbilhão de pensamentos.
Terminou de ler a matéria de jornal e não se surpreendeu muito quando descobriu que o proprietário havia sido carbonizado, mas que algumas coisas na loja haviam permanecido relativamente intactas. Na foto do jornal pôde ver as prateleiras ao fundo, e caso se prestasse atenção, próximos aos destroços no fundo poderia se ver os três manequins que se encontravam no seu local de trabalho naquele exato momento.
E o que faria depois daquilo? Com certeza não gostava da ideia de pisar no shoping. Talvez nunca mais pisasse em um shoping na vida, mas alguma coisa lhe dizia, ao mesmo tempo, que aquilo tudo era loucura. Sua paranoia com perseguições havia aumentado a ponto de ela quase agredir um mendigo que lhe pedia alguns trocados naquele mesmo dia, mas...
...Sentia que sua vida era ameaçada.
Começou a preparar se currículo novamente naquela mesma noite. Sabia que não conseguiria continuar naquele trabalho por muito mais tempo. Estava perdendo a sanidade pouco a pouco. Talvez fosse para algum daqueles restaurantes trabalhar como garçonete, ou talvez fizesse algo completamente diferente. Não importava. Não importava o fato de que não conseguia ficar em um emprego por mais de um ano (sua mãe fizera questão de lembrá-la daquilo em sua última conversa). O fato é que era infeliz naquele local. Talvez até se mudasse daquela cidade se tivesse a chance, mas só o tempo diria.

5


Quando o dia amanheceu, ela teve de ir de volta para o trabalho. Não esperava encontrar muitas pessoas por lá em plena segunda feira. Abriu a porta da loja e se deparou com um dos suportes de calças no chão e os cabides espalhados.
Soube naquela mesma hora...
Soube que fora aquele o objeto a despencar do outro lado da linha do telefone. O ruído da parte superior do suporte havia caído de lado no chão, e os cabides havia deslizado para o lado, de forma que algumas das calças jeans haviam sido lançadas um pouco para a direita. Era algum tipo de brincadeira?
O Leão Marinho chegou mais cedo naquela manhã. Parecia sério.
_Marta, posso dar uma palavrinha com você?
Foram até o balcão. Mário abriu o registro das ligações telefônicas.
_Marta, eu me deparei com essas ligações aqui quando eu vi que as contas vieram mais altas esse mês.
Ela percebia aonde ele queria chegar. Os números discados eram os da casa dela própria. Alguém havia ligado daquele telefone durante vários dias depois das oito da noite horas da noite. Uma fera tentava abrir seu caminho no peito de Marta, fazendo-lhe perder o controle.
_Eu não entendo._Ela dizia, mas por dentro estava lutando com todas as forças para não gritar e arrancar os próprios cabelos ali mesmo.
_Eu também não. Acho que vou ter que ligar pro pessoal e dar uma olhada no que anda acontecendo. Alguém pode ter clonado essa linha telefônica? Será que esse tipo de coisa existe?
_Eu não sei._A palidez de seu rosto era evidente. Ela notou, no entanto, que algumas das ligações ali mostravam o número da casa de Mário. Ele também havia recebido as ligações?
Ele se afastou para cuidar de outros afazeres na loja. Não conversariam mais naquele dia, mas ela percebeu que algo havia ocorrido com o Leão Marinho... Parecia estar buscando explicações da mesma forma. Fosse como fosse, aquele era o momento de tentar manter a calma.
Marta seguiu com sua rotina normal. Despediram-se à tarde quando ele foi cuidar de sua vida. Ela permaneceu completamente só na loja, e agradecia cada vez que os fregueses entravam e demoravam-se com suas compras. Ela havia tomado providências para se... Defender caso fosse necessário. Carregava um objeto dentro de sua bolsa.
Um rapaz foi verificar o casaco do manequim masculino em um momento, e quando puxou o tecido com um gesto suave, foi o suficiente para que tudo despencasse estrondosamente no chão.
_Não tem problema. _Marta disse ao rapaz que tentava recolocar as coisas._Eu cuido disso daqui a pouco.
O rapaz saiu da loja, aparentemente satisfeito com a compra das peças. Ela se viu só com aqueles manequins malditos novamente. Havia algo de errado... Pareciam mais vivos? Tinha a sensação de estar sendo observada... De ser motivo de piada para eles. Loucura certa. Senhoras! Ela havia comprado uma passagem só de ida para as montanhas da loucura, e agora começava um desfile particularmente grotesco de medos irracionais!
Às cinco da tarde, finalmente perdeu a paciência e decidiu que seria seu momento de bravura. Içou as pernas do boneco, e encaixou a parte de cima do corpo com o casaco. Logo em seguida, posicionou a cabeça e pôs óculos escuros para dar-lhe uma aparência mais humana. Pronto. Não havia nada a ter medo. Era só um boneco grande e de plástico. Extremamente leve...
O boneco despencou mais uma vez. O tronco e a cabeça caíram por cima de seu corpo. Quando ela atingiu o chão, o golpe lhe fez ver algumas constelações e ela quase perdeu a consciência. Lutou para manter-se consciente. Parecia presa. Respirou várias vezes e tentou erguer o manequim, mas ele parecia demasiado pesado naquele momento. Como se fosse um corpo verdadeiro...
Acertou vários golpes com os cotovelos, e após vários chutes conseguiu tirar o tronco de cima de si. Empurrou-o com violência e se arrastou para longe. Sangrava pelo nariz e seu braço doía insuportavelmente. Foi até o banheiro para lavar o rosto quando conseguiu se acalmar. Lavou o sangue do nariz, decidiu que fecharia a loja mais cedo naquele dia. Já era o suficiente. Voltava-se em direção à porta quando esbarrou em algo.
Viu o manequim feminino atrás de si. Fitando-a. Caçoando... Soltou um grito e correu na direção errada. Tropeçou em algo, e o resto foi escuridão.

6


E a lucidez voltou lenta... Ela despertou no banheiro e sua respiração era difícil. Levantou-se com dificuldade. Não havia nada no banheiro agora. Tinha de se apressar. Sabia que não escapasse de lá o quanto antes as consequências seriam ruins. Que horas eram? Não sabia. Era escuro, talvez tarde da noite. Não sabia por quanto tempo havia permanecido inconsciente. Abriu a porta devagar, e quando não viu nenhuma ameaça, passou. Onde estavam os malditos manequins? Não havia nenhum deles na vitrine... Seguiu seu caminho, e trancou a porta da frente. Felizmente as luzes do shoping ainda permaneciam acesas. O segurança ainda não havia fechado o local. Ela se apressou para chegar até a escadaria, mas parou no meio do caminho. O local estava demasiado escuro. Deveria tomar o elevador? Não. Já chegara longe demais. Começou a descer a escada devagar. Seu tornozelo latejava por causa da última queda.
Quando havia pisado por fim no primeiro degrau, uma das lâmpadas do corredor deixou de funcionar. Ela ouviu um ruído metálico pavoroso atrás de si, e viu o que havia temido: um homem de blusa preta segurava seu pulso... um casaco marrom, e as calças jeans. Ela puxou seu braço em resposta, e sentiu seu pulso rompendo. A dor lhe fez gritar a plenos pulmões. Era a hora...
Chutou o manequim com toda sua força; usando sua mão direita, pegou a faca que guardara na bolsa. O boneco arrastava-se em sua direção, mas ela não se segurou. Perfurou-o várias vezes com fúria cega. De novo, de novo e de novo. Quando conseguiu erguer-se, fugiu em direção á garagem.
Acelerou com seu carro como se não houvesse amanhã.
NUNCA MAIS.

7


Mário havia se deparado com uma das mais inusitadas cenas de sua vida no dia seguinte: um de seus manequins fora abandonado perto da escadaria do shoping, com vários furos de uma lâmina na blusa e no casaco novos...
Levou-o de volta, afinal era só vesti-lo com algumas roupas novas. Marta estava agindo estranho nos últimos dias, e se recusava a conversar sobre o ocorrido. Dissera alguma coisa sobre “preferir tomar um tiro a ter de voltar a trabalhar lá”. O serviço telefônico lhe havia informado que não havia problema nenhum com a linha, e que, de fato, as ligações haviam sido feitas naquele mesmo local e naqueles horários que constavam no registro. Imaginava que ela tivesse usado o telefone imaginando que não seria descoberta. Todas as luzes do andar de cima haviam se queimado. Naquele exato momento alguns funcionários trocavam as lâmpadas no andar inteiro... Algum curto circuito? Eventos estranhos...
Ele não teria dificuldades em encontrar outra funcionária. Mas naquele dia teria de ficar na loja e organizar as coisas a sua maneira. Levou de volta as partes do manequim, e trocou a camisa preta por uma branca nova em folha. O casaco era um caso perdido. Conservou aqueles óculos escuros. Descontaria aqueles estragos do salário dela, com certeza. Pensava em instalar câmeras de segurança na loja caso voltasse a contratar alguém. Seria a opção mais viável para evitar problemas como aquele. Havia algo mais...
Havia recebido algumas ligações durante várias noites durante as últimas semanas, e elas haviam vindo daquela loja. Como era possível se tanto ele quanto aquela ingrata estavam no conforto de suas casas? Alguém havia entrado na loja?
Organizou as prateleiras. Quando arrastou o manequim masculino para uma posição melhor em frente à vitrine, percebeu que era um pouco mais pesado do que os demais. O esforço de organizar as coisas fez com que suas costas protestassem; então ele se sentou no banco e permaneceu ali, fitando o vazio dos corredores à frente.
Percebia algo de curioso enquanto refletia sobre sua própria vida ali. Não se sentia à vontade com a face daqueles bonecos de plástico. Feições lisas e desumanas...
Por alguma razão que não compreendia completamente, na próxima hora não conseguia tirar os olhos deles.


Autor: Luigi C. Domani