Conto: Tambores

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conto de terror, medo
Os tambores nunca cessavam de tocar. De dia ou de noite, num constante ritmado que dava nos nervos. Quando desembarcava no Terminal Urbano e Ferroviário do Grajaú, logo era saudado pelo som blasfemo. Um som bem sutil, porém de uma nitidez cortante. Com certeza se tratava de um rito afro, mas Ricardo não saberia dizer de que natureza era esse rito. Aquilo instigava sua curiosidade de uma maneira formidável, pois se tratava de um estudioso amador de ocultismo. Amador, porque em verdade prestava serviços numa empresa de contabilidade, mas esse era o tédio de sua vida.

Nas longas viagens de trem que fazia no trajeto de ida e volta do trabalho, sempre em mãos tinha um livro sobre viagens interplanetárias, magia negra, necromancia, teosofia, entre outros temas ligados ao oculto. As pessoas torciam o nariz e persignavam-se quando liam os títulos de seus livros. Mas ele não ligava, sabia a natureza de seu interesse. Não buscava lesar ninguém com os conhecimentos de magia que adquiria. Tudo que almejava era fugir do tédio da existência parca cotidiana. Tinha a nítida sensação de haver um horizonte de possibilidades muito maior que o de uma vida mortal.

Contudo, jamais tomara conhecimento de um culto ancestral ser praticado em seu bairro natal. Nascera e crescera naquelas imediações e nunca tinha escutado algo sobre um estabelecimento de Umbanda ou Candomblé. Mas há quinze dias os instrumentos tamborilavam em sua cabeça, e o mais estranho era que nem as pessoas da sua casa nem seus amigos compartilhavam de suas audições. Mas ele atribuía isso a falta de atenção ou incapacidade auditiva, e passou a querer descobrir de que residência provinha a música.

Já havia lido vários livros de ocultistas que defendiam a tese de que a frequência emitida pelo som dos instrumentos de percussão emanava vibrações capazes de acordar coisas antigas, vindas do espaço, que estavam em estado latente no interior do planeta, aguardando serem despertadas de uma hibernação destinada à recomposição de energias orgânicas. Desde que os sons fossem emitidos na frequência e notas certas, os cérebros desses seres tinham mecanismos que funcionavam como antenas de captação e outros que eram como alavancas de ativação. Certo teósofo italiano chamado Conradi Petrucci, escreveu um tratado chamado “A Escuridão que Chama da América”, no qual relata como foi um plano alienígena a ida forçada dos negros africanos para o Novo Continente, para que, sendo eles peritos na arte do tambor, acordassem as criaturas que jaziam debaixo daquele solo.

Ricardo passou a, logo que desembarcava na Estação Grajaú, vagar pelas ruas do bairro, seguindo o som no intuito de descobrir sua origem. Mas essa busca se mostrou infrutífera, pois quando encontrava a rua e se dirigia a casa da qual parecia vir a musica, chagando a porta da mesma, verificava que o som estava vindo de outra rua adjacente. Várias vezes os moradores dessas residências o encaravam desconfiados, logicamente pensando ser um assaltante. Nessa loucura ficou por nove dias, até que acabou desencanando do assunto.

Num domingo de manhã ensolarada, acordou bem disposto, tomou café e resolveu fazer uma caminhada na praça mais próxima. Mas logo se lembrou do tambor macabro e aquilo minou seu humor. Imediatamente começou a escutá-lo com seus baques surdos e insidiosos. Pensou: “isso é coisa da minha cabeça”, “só escuto quando me lembro do assunto”. Teria alguma chance de estar sofrendo algum transtorno psicológico? Se bem que a rotina estressante do escritório contábil estava o levando à loucura. Mas saiu para caminhar.

Ao cruzar uma rua próxima à sua, reparou que havia uma viela pela qual nunca passara. “Puxa!” surpreendeu-se, “moro a vinte e oito anos aqui e nunca precisei usar esse atalho!”. “Mas também ele vai dar numa rua pela qual já passei milhares de vezes. Não há nada novo aqui”. Mas, com tempo de sobra e curioso como era, emborcou pelo estreito caminho calçado.

Para sua completa confusão, desembocou numa via que jamais imaginava existir ali. O mais estranho é que se tratava de uma rua larguíssima, que inclusive deveria ser avistada de cima do terraço de sua residência. Pensou em todas as disposições geográficas e de ângulo, e concluiu na impossibilidade de existência daquela localidade.

Esses pensamentos logo foram afastados de sua mente por algo na “atmosfera” do lugar. Era como se um diáfano vapor perpassasse todos os prédios e objetos. Não que fosse visível. Complicado de explicar. Apenas era como se a visão das coisas estivesse embaçada. Ou seriam seus sentidos que estavam entorpecendo? Mais uma vez a possibilidade de estar com a saúde mental comprometida pareceu namorá-lo.

“Ei! Espere!”, disse baixinho pra si mesmo. “Não é isso que está causando estranheza em mim!”, “É o silêncio!”.

De fato, havia um enlouquecedor silêncio na rua. Nem uma voz humana, barulho de choque entre objetos, miado, latido, choro de criança. “E OS TAMBORES!!!!!? Cadê o som dos malditos tambores?”.  Contra toda expectativa, nem mesmo a audição ritualística parecia sobreviver naquele local. Era como se tudo estivesse morto. Era como se a rua estivesse abandonada.

Todavia, somente voltou a andar, e os tambores recomeçaram a tocar em profusão. Pareciam estar em cima dele. Estranhamente ele sabia que eram para ele... O ritmo parecia ter ficado demoníaco, com batidas que pareciam estraçalhar os instrumentos. E no mínimo deveriam ser uns cem tambores! Mãos humanas não poderiam percutir tão rápido... mesmo vertendo sangue. Em verdade, o mais provável era que estivessem batendo com marretas nos tambores.

Deu de cara com a residência da qual a musica emanava. Poderia chamar aquela construção de casa? Não que tivesse algum formato bizarro ou estivesse em péssimo estado de conservação. O que tinha, ou melhor, faltava, era algo bem mais simples. Simples, porém essencial. O prédio não tinha portas nem janelas!

Tratava-se de um sobrado comum, apenas com laje, sem telhas. Formato quadradão, como a maioria das casas na periferia de São Paulo. Estava apenas com reboco, sem acabamento de massa fina. O prédio não tinha quintal nem era cercado por muros, o que levou Ricardo a imaginar que se tratava de um lugar destinado a ser depósito de algum comércio.

Mas enquanto cismava com a construção, uma voz pareceu sussurrar num estreito corredor lateral. “Por aqui”, ordenou um tom imperativo vindo do corredor. Por incrível que pareça Ricardo soube no mesmo instante que era para ele. Como um zumbi dirigiu-se à lateral. Não soube dizer em que momento uma neblina densa tomou conta do mundo. Nem mesmo os extremo da rua podiam ser vistos. E nenhuma alma viva trafegava pela local. Estariam todos dormindo?

Ele estava enganado. A casa não era de todo lacrada para o mundo exterior. Existia uma porta no canto esquerdo. Ela estava aberta e Ricardo se achegou. Deparou-se com um breu no interior, obviamente pela ausência de janelas. “Pode entrar”, chamou a voz rouca. Quando seus olhos se acostumaram à escuridão, ele percebeu que havia uma vela no extremo do recinto, iluminando miseravelmente o perímetro. Vela preta.

Por fim, encontrou seu anfitrião, um sujeito negro de aspecto simplório. Não havia nada de anormal nele, exceto uns olhos vidrados. Automaticamente Ricardo o tomou por cego, e é claro que a educação não o deixou mencionar qualquer coisa a respeito. O bizarro é que em nenhuma outra oportunidade a cegueira havia lhe gelado o sangue nas veias. Os tambores estavam a todo vapor, mas estranhamente no interior da casa seu som era abafado e distante, ao contrário da rua.

“É aqui que está acontecendo um ritual não é?”, perguntou. “Venha comigo”, disse o sujeito negro já se voltando para o cômodo que parecia ser o átrio principal da habitação. Não houve alternativa a não ser segui-lo. Algo gosmento inundava o chão, e mesmo com uma iluminação decadente, Ricardo percebeu um rastro como o deixado pelas lesmas. De maneira suspeita e opressiva, como num passe de mágica, veio a lembrança de um dos capítulos do livro de Petrucci. O tal trecho descrevia as criaturas do fundo da Terra. Ele estremeceu ao imaginar seres cintura para baixo cobras, rastejantes, e cintura para cima humanoides, com garras longas e olhos sanguíneos, injetados. Eram necessários dias e dias de repique de tambores para chamá-los à superfície e, uma vez aqui, tinham uma necessidade fremente de se alimentar de carne. Uma carne proibida e para muitos, sagrada. Porque não se lembrou disso antes! Voltou-se, e tudo atrás de si havia sumido numa escuridão de um negro que não era apenas escuridão, era alguma coisa, uma coisa que se diria tangível.

Cadeiras estavam dispostas no átrio, mas não haviam pessoas sentadas nelas. Tudo estava disposto num semicírculo voltado para frente, inclusive as velas. Negras. A mesma escuridão tangível ocupava o fundo do cômodo à sua frente, como uma tinta, como se estivesse vindo em sua direção... E os tambores continuavam! Sem haver tambores, nem quem os tocasse! Mas até mesmo esse espanto foi engolido por outro maior. Uns olhos de sangue, vindos das trevas nos fundos da sala. Não podia ser verdade! Era coisa da sua imaginação! Homens-cobra faziam parte da maioria das mitologias dos povos. MITOLOGIAS!!!

Virou-se para perguntar ao anfitrião que tipo de rito era aquele. Escutou um barulho de metal raspando em couro. Tentou olhar para frente, mas foi atingido. Garganta. Gargan...


Autor(a): Leandro Aparecido de Souza