Conto: Perseguidor, o djin do cemitério

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Eu sempre fui uma pessoa introvertida, tinha medo de expressar os meus sentimentos, tinha medo de dizer e fazer o que eu realmente tinha vontade. Meu medo era de que rissem de mim e me rejeitassem caso eu fizesse algo de "desajeitado". Esse é o grande mal das pessoas: todos querem ser aceitos e reconhecidos por alguém. Todas as pessoas desejam serem vistas e ouvidas. Comigo não era diferente e com você também não é.

Não sei ao certo quando isso começou, mas eu fui me isolando, evitando interagir com as pessoas, o que em um ambiente escolar, que você invariavelmente tem de interagir com vários indivíduos, é um grande feito. Mas, tudo isso começou a mudar no último ano do colégio, quando eu conheci Milena.
Ela era uma garota diferente; pele branquinha, cabelos negros, olhos verdes, usava roupas pretas, pintava as unhas de preto... era completamente diferente dos demais, e mesmo assim eu não via os garotos fazendo piadinhas com ela e coisas do tipo. Talvez por ser tão bonita que ela não era alvo de chacotas e coisas do tipo. Ali era em uma cidadezinha relativamente pequena do interior do estado de São Paulo, e por isso não é de se estranhar que pessoas consideradas "diferentes" do padrão, fossem alvo de comentários maldosos.
Ao notar essa liberdade que ela possuía para se expressar sem se importar com as outras pessoas, eu comecei a admira-la e pela primeira vez, me interessei verdadeiramente por uma garota. Coincidência ou não, certo dia teve um trabalho de história em dupla, e o professor me pôs justamente com ela. Eu fiquei mais duro que o batman do seu lado, mas logo minha tensão foi embora quando ela quebrou o gelo puxando papo, e notei que ela era uma pessoa simpática apesar de sua aparência dizer o contrário. Depois disso, por incrível que pareça, ela começou a conversar comigo e logo peguei confiança. Eu achava incrível uma garota tão bonita conversar comigo. Mal sabia eu.
Logo, ela me convidou para sair junto com uma galera que ela conhecia depois da aula. Como eu não possuía amigos e nem fazia grandes coisas além de ficar enfurnado em casa lendo gibis, eu topei de imediato. Confesso que passou pela minha cabeça que aquilo era uma desculpa para sair comigo, e que na realidade não apareceria nenhuma galera e seríamos apenas nós dois. Sim, eu fantasiei essas merdas na minha cabeça, mas quando cheguei no local de encontro marcado, o meu sonho melado foi pras cucuias:
Não havia só ela, tinha mais quatro rapazes esquisitões trajando calças rasgadas, coturnos, pulseiras com pontas, correntes e camisetas de bandas que nunca ouvi falar, além de outra garota no mesmo estilo que Milena, mas não tão bela, é claro.
Eu fiquei completamente constrangido. Primeiro por estar vestido como um "caipira normal" no meio daquela galera, e sentir o olhar de deboche deles me derreter; e segundo, por eu ter tido uma falsa esperança com Milena. Cavar um buraco no chão e enfiar a cabeça era uma opção viável no momento.
Percebi que ela fez um certo olhar de reprovação para eles, que então mudaram de atitude em relação à mim e começaram a puxar assunto. Eram pessoas totalmente diferentes de mim, estavam lá conversando sobre filosofia, outros assuntos que nunca tinha ouvido falar ou que eu não estava prestando atenção. Eu estava apavorado por dentro, me sentindo totalmente deslocado. Eles riam, bebiam vodka com sprite, fumavam. Apesar de estarem tentando ser agradáveis comigo, eu percebia a grande lacuna que havia entre nós.
Me ofereceram bebida, fiquei com vergonha de recusar e acabei tomando dois copos. Nunca havia bebido antes, aquele cheiro de álcool de limpeza e a ardência na garganta quase me nocautearam, meu corpo formigava. Quando fui embora naquele dia eu cheguei no banheiro de casa e vomitei. Depois chorei de raiva por ser um mané, que não sabia nem o que estava fazendo lá. Pela primeira vez na vida eu me incomodei por não ser popular, não ser o centro das atenções, por não ser o cara bonitão que toda garota deseja. Isso me enojou completamente.
Naquele dia eu decidi que aquilo iria mudar. Comecei a fazer exercícios em casa para espantar a magreza, comprei algumas camisetas pretas e pra completar, peguei a coleira que pertencia ao Bob, um cão da raça Mastim que nós tínhamos mas já havia falecido. A coleira era de metal trançado e possuía umas pontas. Ficou frouxa no meu pescoço, completamente tosca, mas eu relacionei aquilo ao estilo daquela galera e pensei estar arrasando. Quando me encontrei novamente com o pessoal, devidamente à caráter, eles ficaram me encarando espantados com a mudança, mas logo trataram de me apelidar de "Rex", por causa da coleira. Eu fiquei sem graça no começo, mas logo comecei a sentir um certo orgulho do apelido, desse meu novo eu... Rex!
Duas semanas depois eu já estava habituado ao novo estilo: Saindo com eles, dando risada, dançando com minha própria sombra na parede, bebendo, fumando. No fundo, minha esperança era que Milena se apaixonasse por mim. Eu percebia como os outros a tratavam, era como se ela fosse a líder do grupo, eles tinham um certo respeito por ela e sempre acabavam acatando à sua palavra. A última palavra sempre era dela. Meus pais não deram tanta bola quanto eu pensei quando me viram vestido de preto. Pensaram que era uma fase de rebeldia, e que era até bom eu "pôr para fora" o que estava sentindo, já que sempre fui muito fechado. Confesso que fiquei um pouco decepcionado com essa reação, mas enfim...

Passaram-se dois meses e eu estava me sentindo cada vez mais confiante, conseguia conversar com o pessoal, me sentia mais à vontade com eles. Os programas que fazíamos estavam ficando cada vez mais hardcores. Me chamaram até para beber no cemitério, veja só. No começo eu achei isso bem estranho e tive um certo receio, mas não demonstrei e topei ir junto de primeira. Eles pareciam gatos vadios. Pegavam um pequeno impulso, batiam o pé na metade do muro e já estavam passando para o outro lado. Eu quase arrebentei a sola do meu all star tentando fazer o mesmo, mas acabei conseguindo pular para dentro.
O clima de um cemitério à noite é terrível, só não me caguei todo pois estava com uma galera, então isso me distraía um pouco. Com o passar dos dias, esse programa se tornou mais frequente, então penso que já deveria ser uma rotina para eles, e estavam apenas maneirando comigo no começo para eu "não me assustar". Enfim, eu estava mais enturmado, e percebia como Milena começava a me olhar de uma forma diferente. Eu pensava que ela estava começando a se interessar por mim como homem.
Certo dia, estávamos reunidos como de costume, e Ricardo, o mais puxa-saco da Milena, soltou um comentário: "Ei, agora já estamos em sete. Não acha que já é hora de fazermos aquilo?". Milena apenas respondeu que logo chegaria a hora. Confesso que fiquei intrigado com o que ele falou, mas decidi não perguntar nada.

***


Era uma noite de lua nova, começo do mês. Como de costume, sai à noite para encontrar o pessoal. Chegando à praça central da cidade, estavam os seis conversando. Quando eu cheguei, percebi que eles meio que disfarçaram o que estavam comentando. Milena sorriu ao me ver, chegou mais perto, pôs a mão em meu ombro e disse: "Vamos?". Para onde? - pensei, mas não falei, apenas assenti com a cabeça.
Primeiro passamos na casa de Milena, a mãe dela não estava; ficamos bebendo um pouco, jogando conversa fiada, até que por volta de dez horas, saímos de lá. Catarina, a outra garota do grupo, estava levando um saco misterioso, o qual eu não sabia o conteúdo e também decidi não perguntar nada, apesar da minha crescente curiosidade. O caminho que tomamos era conhecido, o mesmo que trilhávamos quando íamos para a bebedeira no cemitério. Quantas vezes que fizemos esse programa, estava se tornando algo até comum para mim, já não me causava espanto, apesar da estranheza da situação. Eu realmente estava acostumado com essa nova cultura, esse é o Rex.
No fundo, talvez eu nem ligasse tanto para essas coisas, talvez eu fizesse apenas para impressionar Milena, coisas de garoto bobo apaixonado. Eu sabia que dia ou outro eu teria de chegar nela, tomar alguma atitude se quisesse ter algo a mais com ela além de amizade.

Finalmente chegamos ao cemitério. Era a primeira vez que eu tinha estado no local em uma noite de lua nova. O local estava bem mais escuro, chegava apenas uma leve iluminação alaranjada vinda das lâmpadas de potássio dos postes da rua. Uma leve brisa trazia um cheiro de lodo, vindo das sepulturas. Sentia gelar até meus ossos. Um arrepio correu o meu corpo, como que um pressentimento de mau agouro. Tremi os ombros e chacoalhei a cabeça. Continuei seguindo Milena, como um bom cordeirinho.
Ela caminhou até uma tumba antiga e mais ampla que as demais, ao fundo do cemitério. Catarina que estava ao seu lado, abriu o saco e entregou à ela algumas velas amareladas.
—Passa o isqueiro - disse Milena. Ricardo, o puxa-saco dos infernos, entregou o dele imediatamente. Milena acendeu sete velas e as fixou acima da lápide com a cera derretida, formando um círculo com elas.
—O que é isso? - perguntei, após tomar coragem. Milena então tomou a palavra.
—Como sabem, à quase 1 ano e meio que esperamos por esse dia. Vários momentos propícios para a invocação passaram-se sem que pudéssemos fazer o ritual. Mas agora, com sete membros, podemos completar a invocação de [...], o Perseguidor. - Agora todos me olhavam com sorrisinhos estampados na cara. Sim, EU era o sétimo membro.
—O perseguidor? - perguntei novamente. Tudo bem que beber no cemitério não é uma coisa digamos assim, "normal", mas esse negócio de invocação do perseguidor começou a me deixar bolado.
—O Djinn do cemitério - respondeu Ricardo.
—Essa noite vamos fazer o ritual - prosseguiu Milena - e ter os nossos desejos atendidos pelo Djinn.
Olhei para o rosto de cada um ali, esperando que fosse alguma piada ou brincadeira que fizeram comigo para tentar me assustar, ou algo do tipo, mas a única coisa que eu enxergava, eram rostos sérios e o tremeluzir das chamas das velas. O silêncio ensurdecedor era apenas quebrado por um pio de coruja ao fundo. Não falei nada, não sabia exatamente o que estava se passando, apenas forcei um sorriso com o canto da boca.
Catarina tirou ossos de dentro do saco - eles pareciam ossos de galinha - e os espalhou dentro do círculo de velas. Depois passou um carvão preto para Milena, que desenhou uma 7 meio curvo, parecido com uma foice, acima da lápide. Então, pegou também um livro preto, que me pareceu ser uma bíblia e colocou em cima também.
Aquilo estava realmente estranho, a ideia de que aquilo tudo não passava de uma pegadinha já tinha desaparecido da minha mente. Eu tinha a impressão de ver vultos passando por trás das lápides com minha visão periférica. Concluí ser paranoia minha e voltei a encarar Milena.
—Eu, a líder do ritual, começo agora os trabalhos - disse Milena, folheando o livro. Realmente era uma bíblia. Ela arrancou uma das páginas e começou a queimá-la segurando acima de uma das velas. Confesso que nunca fui muito de frequentar igrejas e ir à missa, mas senti-me ofendido com a atitude dela.
—Firmamentum in medium aquarum et separet aquas ab aquis, quase sicut inferus, et quae [...] - Milena prosseguia recitando essa palavras estranhas; a brisa no local parecia aumentar a intensidade cada vez mais. Nossas sombras dançavam por entre as tumbas, enquanto um forte sentimento de perigo tomava conta do meu ser.
Após completar a sua recitação, que durou cerca de cinco minutos, Milena voltou a se dirigir à nós:
—Agora a parte final - eu podia ver o brilho das chamas em seus olhos verdes. Catarina deu uma risadinha e abaixou a cabeça. Eu estava completamente sem palavras, não sabia ao certo o que pensar no momento. Eu não estava gostando do que estava acontecendo, queria sair de lá, mas meus pés estavam como que acimentados no chão. Eu sentia como se algo perigoso rondasse por entre as tumbas. Minha sensação era de que se eu me distanciasse do grupo, seria pego por algum predador, como uma presa desgarrada do bando.
Milena chegou mais perto da lápide em que repousavam as velas e os ossos, e começou a fazer algo que me deixou estupefato. Primeiro ela tirou os coturnos e depois começou a abrir a braguilha da calça jeans.
—O-o que singnifica isso? - perguntei. A cena estava se tornando cada vez mais confusa. Diego que estava do meu lado, respondeu:
—Magia sexual. - disse como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Milena já havia abaixado as calças, revelando sua pele branca, e estava agora tirando a calcinha. Aquilo me deixou abismado. Não que eu nunca tivesse desejado vê-la assim, mas não na frente dos outros, não em uma situação bizarra daquelas. Então ela virou-se para Ricardo e fez sinal para que ele se aproximasse. Os outros apenas assistiam a cena imóveis. Eu já imaginava o que estava por vir, a cena me enojava, pensar na Milena, a garota que eu queria como minha namorada por todo esse tempo... droga, droga, droga.
—Que merda! - esbravejei - isso é loucura... só pode ser brincadeira. Eu vou embora daqui. - e me virei, quando senti alguém segurar-me pela coleira, era Diego novamente.
—Você não poder ir, temos que estar em sete. - disse ele. Ricardo, o desgraçado que já estava arriando as calças, virou-se para mim e disse com cara de deboche:
—Calma rapaz, logo é sua vez. - Aquilo me fez subir o sangue pela cabeça. Então quando tentei me desvencilhar de Diego, os outros dois caras, Henrique e Gustavo, ajudaram ele a me segurar.
—Fica quietinho aí - disse Catarina, que estava lá, perto dos dois seminus.
—Porra! - gritei. Eu não conseguia me soltar deles. Milena não disse nada, sua alma parecia não estar mais ali. Ela apenas se deixava possuir por aquele merdinha. Lágrimas de ódio começaram a escorrer dos meus olhos.
 Depois de algum tempo, quando terminaram, Milena se levantou. Ela já estava completamente nua. Ela ergueu a face em nossa direção e então começou a falar. Um arrepio correu minha espinha, o sentimento de ódio e mágoa que eu estava sentindo, foram substituídos por pavor. Aquela voz não era a de Milena.
—Vocês me invocaram porque têm desejos. - as chamas das velas crepitavam freneticamente - vós sois seres fracos, pois de outra forma conseguiram saciá-los por si mesmos. Agora, eu [...], que vago entre os mortos, realizarei o desejo maior de seus corações... Mas em troca, em uma data, voltarei para pegar algo que lhes pertence.
—Eu não quero porcaria nenhuma! - gritei. Instantaneamente, Milena, ou melhor, o corpo de Milena, possuída pelo Perseguidor, olhou diretamente para os meus olhos. Senti minha alma ser estrangulada.
—Têm certeza?! - e sorriu, aquele sorriso grande e assustador - o coração de um homem guarda muitos desejos.
Sua resposta me deixou perturbado, o que quis dizer com isso? Não importa, eu aproveitei que nessa hora estavam distraídos com a cena, e haviam me soltado. Virei-me e sai correndo com todas as minhas forças, o mais rápido que pude. O cemitério parecia muito maior do que antes, parecia outra dimensão. Silhuetas de túmulos, jazigos e estátuas passavam ao meu lado. O ar me faltava, a respiração estava ofegante e pesada. Eu não olhei para trás, apenas continuei correndo, esperando alcançar o muro o mais breve possível. Eu queria esquecer de tudo, daquelas pessoas, de Milena, do que eu sentia por ela, de toda aquela cena terrível que fui obrigado a encarar, e também... do Perseguidor. O que foi aquilo, nunca tinha presenciado nada tão estranho e assustador na minha vida. Nunca fui crédulo no sobrenatural, eu não sabia o que pensar de tudo aquilo.


Não lembro exatamente o que fiz depois disso, eu estava completamente transtornado, só me lembro de ter acordado no dia seguinte em minha cama. Levantei-me, lavei o rosto, peguei todas aquelas calças rasgadas e camisetas pretas e joguei no lixo. Também "pendurei a coleira".
Desci para a cozinha e tomei meu café da manhã, como sempre, e fui para a escola. Já próximo o fim do ano, logo finalmente me formaria; eu não via a hora de fazer faculdade na capital e deixar aquele lugar para trás, junto com todas as lembranças negativas.
Quando cheguei na classe, lá estava ela, Milena. A maldita ainda teve a audácia de olhar para mim, sorrir e abanar a mão, como se não tivesse acontecido nada. Eu apenas ignorei, fiz questão de sentar longe dela. As pessoas me olhavam, estranhavam eu ter voltado ao estilo "normal". Quando deu a hora do intervalo, ela veio falar comigo. Eu não conseguia encarar ela sem voltar à minha mente a cena dela nua, e também o que ela fez com o merdinha do Ricardo, argh.
—De boa, Milena, eu não quero papo com você mais, nem com aquele pessoal estranho que você anda. - falei. Ela olhou para baixo e fez cara de pesar. Se eu não soubesse com quem estava lidando, até ficaria comovido. Quando parei para retroceder os acontecimentos em minha mente, percebi que ela tinha se aproximado de mim por puro interesse: eu era apenas a sétima pessoa de que ela precisava. Como fui burro, caipira, ingênuo, idiota.
—Não precisa mais ficar atrás de mim - prossegui - você já conseguiu o que queria, não é? Eu fui apenas um peão pra completar o seu tabuleiro macabro, agora já chega!
—Não é assim... - disse ela, ainda com aquela cara de coitada. Droga, se eu não tivesse visto tudo o que vi, estaria comendo na mão dela agora.
—Acho que você deveria ir atrás do Ricardo, você parecia estar se divertindo muito com ele ontem. - falei sarcasticamente - arrivederci!
Depois disso ela ficou sem palavras, então dei as costas e saí. No outro dia foi a mesma coisa, ela tentando puxar assunto comigo, me agradando, mas eu não conseguia olhar para ela sem lembrar-me da cena bizarra no cemitério.Inferno.
Na semana seguinte, estava rolando um burburinho pela cidade. Haviam ganhado na loteria, e para a maior surpresa, era nada mais, nada menos do que o pai do Ricardo, o pela saco dos infernos. A notícia se espalhou rapidamente, eu não aguentava mais ouvir falar no nome daquele arrombado. Enforquei aula e fiquei caminhando sozinho, com meus pensamentos. Lembrei-me do Djinn do cemitério, das palavras que ele dirigiu à mim: "O coração de um homem guarda muitos desejos". Será que o desejo de Ricardo era ficar rico? Droga, ainda é difícil digerir tudo o que passou, Djinn, cemitério, desejo... é muita coisa surreal.
Espera um momento, recapitulando mais uma vez o que ele disse sobre os desejos do coração...  o desejo que permeava o meu coração, o que era mais importante para mim, era que Milena gostasse de mim. Agora ela estava atrás de mim, mesmo depois de ter me usado, de eu não ter mais serventia para ela. Será que...

No outro dia, Milena novamente tentou se aproximar de mim, mas continuei ignorando. Também no outro dia e no outro. Chegou o final de semana, sábado eu dormi até tarde. Quando acordei e abri a porta de casa para sair, lá estava ela, Milena, com lágrimas no olhos, vindo em minha direção. Ela soltou milhares de argumentos, perguntando por que eu estava ignorando-a, sendo cruel e mais um monte de coisas. Eu apenas fiquei lá encarando suas expressões de desespero, eu parecia não ouvir mais sua voz, apenas via sua boca movendo-se. Então voltei à mim.
—Milena... O que você desejou? - perguntei.
—Eu... - sua expressão mudou - E-Eu sei que você está com raiva de mim, mas eu não tive escolha. Minha mãe, ela tinha um câncer inoperável. - seus lábios começaram a tremer, ela falava com a voz embargada - Os médicos disseram que não tinha o que fazer, meu pai nos abandonou quando eu ainda era pequena. Eu e minha irmã só temos ela...
Confesso que fiquei pasmo, por essa eu não esperava. A única coisa que eu consegui dizer foi:
—Ela está bem? - os olhos de Milena se encheram de lágrimas, só que dessa vez ela sorriu.
—Os médicos disseram que o tumor teve uma remissão espontânea, que foi praticamente um milagre!
"Praticamente um milagre, é?..." - pensei. Então, a Milena ficar atrás de mim não se trataria na realidade de amor, mas sim de um desejo concedido pelo Djinn. Mas que droga, eu falei que não queria nada, então porquê? Melhor não pensar muito nisso... mas mesmo assim, será que eu deveria desperdiçar esse desejo? Bem, talvez se eu ficasse com ela só até eu enjoar, eu deveria usar ela, assim como ela me usou... Certo, farei isso, depois darei um pé na bunda dela.

No dia seguinte, estávamos juntos. Tentei esquecer de tudo que aconteceu, mandei ela parar de andar com aquele povo estranho. Ela fez tudo como eu disse, ela parecia completamente obcecada por mim, só pensava em me agradar. É claro que na minha cabeça, eu estava apenas usando ela, dando o troco; mas acho que na realidade eu ainda gostava dela, só tinha muito orgulho para admitir.
Os dias passavam, aquelas memórias sombrias estavam cada vez mais distantes. Chegou a formatura, curtimos a festa, nos divertimos muito, depois fui com ela para um motel, tivemos uma noite maravilhosa. O meu propósito de usar Milena, e toda a raiva que eu senti, tinham se diluído na felicidade do momento. Prestamos vestibular para a mesma faculdade, pretendíamos alugar um apê na capital juntos. A vida finalmente parecia certa, eu estava feliz. Realmente feliz.

Foi pouco antes do natal que aconteceu algo estranho. Ricardo foi encontrado morto. Mas não foi uma morte qualquer, ele morreu por ter tido seu coração removido. A parte que mais intrigava era que não havia qualquer corte ou abertura por onde o coração dele pudesse ter sido retirado. O crime chocou a cidade. A polícia acreditava que fosse um assassinato motivado por dinheiro, devido ao fato do premio da loteria que o pai dele ganhou. Mas, dois dias depois foi a vez de Diego ser encontrado morto sem o intestino grosso, com o mesmo modus operandi.
À essa altura, os jornais já publicavam notícias sensacionalistas de que um maníaco estava à solta, roubando os órgãos de suas vítimas. Cidade pequena, você já viu... o pânico se alastrou rapidamente. Todo mundo vivia com medo e desconfiava até da própria sombra. Mas acho que ninguém estava tão apavorado quanto eu. Imediatamente liguei essas mortes ao fato de que o Perseguidor voltaria para pegar algo em troca dos desejos. Só não esperava que seriam órgãos de pessoas. Que droga, eu sabia que mais hora, menos hora, isso iria acontecer comigo. Que modo horrível de morrer. Esse Perseguidor é o quê? Um gênio que concede desejos ou um traficante de órgãos?
Milena me ligou desesperada, é claro que ela tinha somado um mais um também, e sabia exatamente o que iria acontecer com ela. Logo ela estava em casa, no meu quarto, abraçada comigo.
—Meu, porque você fez isso, porque você me meteu nessa furada? - perguntei - Você se matou, você ME matou, Milena!
—E-eu não sabia que isso ia acontecer - ela soluçava. Mas agora não adianta chorar.
No dia seguinte, ela pediu para dormir na minha casa. Ela estava tremendo de medo, disse que não tinha conseguido dormir a noite toda. Não precisava nem ter dito nada, suas olheiras denunciavam. Ela disse para mim que quando estava quase pegando no sono, via um vulto ao lado de sua cama, e que algo arranhava a cabeceira. No final das contas, não sei quem estava mais apavorado, eu ou ela.
A noite chegou, e com ela uma maldita insônia. Milena estava deitada, dormindo profundamente. Eu, acordado. O vento soprava lá fora, balançando um galho de árvore, que ficava batendo no vidro da janela, em um "tec-tec-tec" insuportável. Saí do quarto e desci as escadas até a cozinha. Tomei um copo d'água gelado, precisava de algo para aliviar a angústia que eu estava sentindo. Algo não estava certo, fiquei pensando na minha vida, na faculdade, no meu futuro e eu comecei a sentir medo de perder tudo isso. Olhei para o lado, na janela da cozinha e fiquei petrificado. No embaçado do vidro, apareceu como que um rosto. Minha mão tremia, o copo quase caiu no chão. Deixei-o na mesa e corri escada à cima em direção ao meu quarto. Quando cheguei na porta, olhei para a cama à procura de Milena, mas a cama estava vazia. Será que ela foi para o banheiro? Voltei para trás, fui até o banheiro, mas não havia ninguém. Então corri novamente para o meu quarto. Estava escuro, mesmo assim não acendi a luz, tive medo de que se acendesse, teria algo que eu não desejasse ver.
Entrei, olhei ao redor e nada. Então percebi algo atrás da cama. Parecia o topo de uma cabeça. Andei lentamente em direção à cama, suor frio escorria em minha testa, a camiseta do pijama já estava encharcada. Meus músculos do pescoço e costas doíam de tanta tensão acumulada. Quando dei mais um passo, a figura foi se levantando lentamente, saindo das sombras. Meu coração parecia que ia saltar pela boca. Eu não conseguia ouvir mais nada, nem o barulho do vento lá fora, nem o tec-tec do galho na janela. Apenas o meu coração. Tum, tum tum.
Quando levantou-se completamente, percebi que era Milena. Apesar da situação estranha, senti um alívio. Então dei a volta na cama e fui lá abraça-la. Ela me abraçou também, lentamente, e começou a chorar.
--Está tudo bem, está tudo bem - falei. Então seu choro foi transformando-se em uma gargalhada. Eu me afastei rapidamente, eu conhecia aquela voz, era [...], o Perseguidor.
—V-você vai me matar? - gaguejei.
—Matar? eu não mato ninguém, apenas pego coisas que me interessam, assim como vocês pediram à mim coisas que lhes interessavam.
—Eu não quis nada! - gritei. Ele riu na minha cara. Parecia que podia enxergar o meu medo e desespero no fundo de minha alma. Pensei em fugir dali, rezar, tentar exorcizar ele, fazer alguma coisa. Eu não queria morrer.
—Oh, então você aproveitou todo esse tempo e não quer me dar nada em troca? - Milena sorriu para mim. Não, não era Milena, era o Perseguidor. Seu sorriso era assustador, bem maior que o de uma pessoa normal. Seus olhos eram frios.
—Você pensa que sem mim você estaria com essa garota? - começou a rir descontroladamente - Você foi apenas usado, ela nunca se interessaria por você. - Ele sabia exatamente o que falar para me ferir.
—Sua carne podre não me interessa, eu vou pegar outra coisa... - fez uma pequena pausa - A sua liberdade.
Após dizer isso, a expressão no rosto de Milena mudou completamente, os olhos penetrantes do Perseguidor desapareceram, e em seu lugar, ficou um olhar de desespero, era Milena. Então ela começou a tossir, cada vez mais e mais. Sangue espirrava de sua boca. Meu desespero voltou. Eu não sabia o que fazer, Milena começou a ficar mole e caiu no chão. A pele branca de seu queixo e garganta, estava manchada pelo sangue escuro. Seus olhos me encaravam com uma expressão desesperadora, como se pedisse por socorro. Lentamente, seus olhos começaram a se fechar.
—Não! - gritei. Esbravejei e continuei gritando, cada vez mais alto.
  Meus pais acordaram e me encontraram chorando no chão do quarto, com Milena ensanguentada em meu colo.

Naquele noite, os outro três que estavam no grupo do cemitério também morreram. Dos sete, o único que não morreu fui eu. Todos na cidade sabiam que andávamos juntos, a polícia ligou os pontos e concluiu que eu fui o responsável pelas mortes. Apesar do advogado apresentar as incoerências dessa acusação, eles precisavam de um bode expiatório para acalmar a população. O resultado foi esse. Preso pelo resto da vida, em troca de um amor artificial. Às vezes penso que seria melhor eu ter morrido junto com os demais. Eu penso nisso às vezes, quem saiba um dia eu tenha coragem...

Quem sabe amanhã.

por: Fernando Bonvento