Conto: Eles viviam no jardim

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Quem nunca teve o desprazer do procurar por algo o qual tinha certeza estar em certo local, mas quando procurou pelo objeto, ele não estava mais lá? Já perdeu meias, isqueiros, palhetas, pendrives? Sabe onde eles foram parar?


Embora tivesse certeza de que havia deixado aquele pequeno bilhete debaixo do cinzeiro no dia anterior, agora, ao que parecia, este estava em um lugar diferente. Não era algo fora do normal, pois objetos desapareciam, às vezes por descuido ou distração e, outras vezes, por uma brincadeira de crianças, mas não havia ninguém naquela casa naquele final de semana.
Havia deixado o papel logo debaixo do cinzeiro preto, na estante de livros, talhada em madeira escura. Mateus não costumava se esquecer das coisas desta maneira. Já houvera dias em que havia esquecido uma chave de um dos cadeados em cima de uma cômoda e que, posteriormente, acabou deslizando para a parte de trás do móvel, provavelmente depois de uma das limpezas semanais. As faxinas, por vezes se tornavam um problema, pois um objeto ou outro sempre acabava desaparecendo e ele só sentiria a falta daquela chave ou de outras coisas quando realmente precisasse delas. Era assim que acontecia sempre, embora alguém já houvesse descrito a Lei de Murphy antes. Aquilo era normal? Achava que não, pois já se havia passado longos trinta e sete anos desde que ele nascera e isso é tempo o suficiente para que uma pessoa amadureça e tenha responsabilidades. No entanto, aquele fato não era de se passar despercebido. O problema continuava a insistir. Primeiro o isqueiro, depois a chave agora o bilhete. Alzheimer? Também não deixava de ser uma possibilidade. Por mais cômica e remota que fosse antes da terceira idade.
O homem com seus trinta e poucos anos começou a procurar a lista de alguns produtos que deveria comprar mais tarde no mercado. Aos poucos revirava as gavetas daquela estante de livros antiga. Procurou pela primeira gaveta, onde encontrou algumas toalhas velhas e, entre elas, uma com renda cor-de-rosa que fora usada por sua mãe e que, supostamente, desaparecera. Mas ali estava, no fundo da gaveta, com os outros panos-de-prato, igualmente antigos. Ao revirar o fundo da gaveta, uma poeira que estava acumulada esvoejou demonstrando seu caráter cinza escuro como o céu nublado. Poeira grossa que havia acumulado durante muito tempo ali. A faxineira teria um trabalho extra na segunda feira (isto se ela continuasse trabalhando naquela casa depois do incidente com os trocados). Logo à direita de onde estava aquela estante com alguns livros e gavetas, havia uma janela pela qual os últimos raios de sol de um crepúsculo reluziam.
Na parte de fora, no quintal, havia um gato preto em cima do muro do jardim, desfilando próximo às roupas penduradas em um varal velho; ao ver o gato fazendo sua pose na parte alta do muro, o cachorro começa a latir cada vez mais alto e com mais intensidade, enquanto seu oponente, armado somente com algumas unhas pequenas e dentes que foram usados para matar alguns pássaros e roedores naquela casa, arrepiava os pelos das costas se arqueava e projetava os dentes para fora com agressividade.
Durante o episódio fora da casa, nada havia sido encontrado na gaveta (e nem nas outras portinholas da estante). Começara a procurar pelos lugares mais improváveis da casa, como debaixo da cama e debaixo do guarda roupas. Talvez (e somente talvez), o vento pudesse ter passado pela fresta da porta alguns minutos atrás e levado o papel para longe dali. Outrora teria se mantido calmo, porém, naquele momento, o súbito desaparecimento da lista começava a se tornar algo irritante. Para o homem de trinta e poucos anos só havia duas coisas realmente irritantes: quando não conseguia encontrar alguma coisa, ou quando não conseguia fazer o computador funcionar; o resto era tolerável.
Novamente, debaixo da cama não havia nada além de um boneco com maquiagem de palhaço. Brinquedo velho que havia marcado sua infância. Um chapéu colorido, olhos pintados de branco e preto e uma roupa cor-de-rosa. Aquilo seria uma visão aterradora hoje, mas é claro que naquela época tudo era diferente; no tempo onde jazia sua infância não havia espaço para seu medo irracional de palhaços. O pensamento lhe fez rir um pouco. Retirou o boneco do canto escuro de sua cama e o colocou na cama. Sua mulher teria uma surpresa quando chegasse. Nada havia debaixo dos outros cômodos da casa além da mesma densa poeira cinza. Talvez fosse a hora de encontrar outra faxineira mesmo.
Mateus finalmente tirou o cabelo ruivo escorrido da testa enquanto abria a pequena geladeira. Uma cerveja cairia bem e não faria mal; depois do que parecera uma eternidade no escritório, O sábado chegara.

__Bruce, para de latir!
Gritou para o cachorro no quintal em vão, cruzou a porta do quarto, foi até a janela ao lado da estante de livros. Pelo vidro da janela ele viu a razão do acesso de seu pastor alemão: aquele gato preto que ele havia posto para fora de casa havia voltado ao lar e, agora, fazia alguns gestos com as patas da frente enquanto o cachorro investia em saltos contra o muro para trazer o adversário de sua disputa territorial para baixo. A cena se repetira pela terceira vez naquela semana. Gatos têm uma memória e tanto, sua mãe dissera e, só agora ele sabia por que, e como SABIA depois da ultima viagem que havia feito com o felino. Pegou uma vassoura e começou a descer a escada para o quintal enquanto uma brisa agradável batia em seu rosto.
__Bruce, vem cá!
O cachorro, imediatamente olhou para trás; ao certo não sabia qual seria a escolha mais lógica. Se obedecesse, não apanharia, mas por outro lado, seu território havia sido invadido. Um dos eternos dilemas dos animais domésticos. Acabou por sucumbir à vontade do dono e, com o rabo entre as pernas e abaixado se afastou, levado pela coleira para o cercado logo à direita, feito com tela resistente desta vez, pois Bruce havia escapado uma vez e acabou quase ferindo um dos colegas de pôquer do homem de trinta e poucos anos, e outra vez realmente ferira seu cunhado.
Quando voltou do cercado, Mateus viu que o gato ainda continuava no muro, resistindo até o último momento. Já vira gatos ariscos é claro, mas aquele era de longe o mais ousado e nada arisco de todos que ele já ouvira falar. O animal andava pelo muro com o rabo levantado; o que parecia ser um gesto indicando sua suposta superioridade. O homem de trinta e poucos anos não tardou em trazer o gato para baixo com o cabo da vassoura, coisa que deu certo trabalho, pois o animal combatera até o ultimo momento quando lhe acertara uma estocada com o cabo de ponta plástica. Caiu para o outro lado do muro, no meio do jardim caótico; o barulho de desprender das garras na superfície de concreto e depois um urro relutante no meio do mato. Ganhara a batalha daquela vez, mas ele voltaria.
O gato é bicho arisco”, sua mãe dissera, “você põe ele longe de casa dentro de um saco e ele volta”. A história não parecia tão absurda agora que vira o quão inconveniente os felinos poderiam ser.
Subiu os degraus mais uma vez até a janela de vidro e depois passou pela porta da cozinha na parte de cima. Chegou até a sala de jantar mais uma vez, olhou para a estante mais uma vez e, embaixo do cinzeiro, havia algo que lhe chamara a atenção: o papel estava lá MAIS UMA V... Mas estivera lá o tempo todo? Não tinha certeza, pois havia checado o lugar, mas, ao mesmo tempo, se lembrava das vezes em que coisas parecidas haviam- lhe ocorrido. Certa vez chegara até mesmo discutir com sua mulher por pensar que ela havia escondido sua caixa de cigarros em algum lugar quando na realidade ele próprio a havia posto em um bolso do paletó.
Pegou a lista e lentamente observou os relevos do papel amassado e marcado com a tinta de caneta azul. Desaparecera temporariamente. Sim, agora que pensara bem, havia checado o cinzeiro umas duas vezes antes de começar a remexer a gaveta. Movera o cinzeiro para a esquerda, afastando-o com a mão direita e depois só se lembrava de estar limpando a sujeira do fundo da gaveta. Sua mulher voltaria no dia seguinte, domingo de manhã, e seria melhor ele ir logo com essas compras antes que o mercado fechasse; teria de ir pegar tudo o que fosse necessário para o evento na noite seguinte, e também havia outra coisa: logo seria pai e era problemático não atender às demandas de uma mulher grávida. “Quando você não dá alguma coisa pra sua mulher quando ela tem vontade na gravidez o filho nasce com mancha...” Não se lembrava ao certo de quem lhe dissera isso, mas a lembrança lhe causava certo desconforto. Não gostaria de ter um filho com uma mancha enorme e marrom no rosto por que sua mulher não pudera comer chocolate em uma daquelas noites frias; ao mesmo tempo achava a ideia absurda. Não era nada mais do que uma lenda urbana, mas as mulheres...

***

Estava parado, procurando um tablete de chocolate. Meio amargo era o sabor. Era para sua mulher. Na seção de doces e outros produtos a base de açúcar. Era o seu favorito (e uma saída rápida e eficaz nas épocas em que a esposa se encontrava “naqueles dias”). Algumas bolachas recheadas de passatempo na parte de cima, outros pacotes de capa azul, verde, desenhos extravagantes de alguns animais, mas nenhum chocolate. Ao que parecia, haviam mudado os produtos daquela seção. Girou levemente a cabeça para o lado esquerdo inclinando-se para baixo e lá estava um produto: alguns chocolates que vinham com figuras de personagens de desenhos animados. Um deles possuía em sua capa a imagem de um duende, verde de pele, um rosto carregado com aquele característico sorriso irônico, algo que poderia ser considerada uma expressão de um ser maligno por crianças (ou algo desenhado com este intuito). Um chapéu roxo e pontudo, olhos amarelos vibrantes e cortados como os de gatos (como os do maldito gato), além de braços descobertos e uma vestimenta curiosa roxa, cobrindo sua pele que parecia escamosa como um réptil. Tentara se lembrar de onde vira aquela imagem, mas quando já começava a lhe faltar ânimo para trazer de volta a memória, lembrou-se que aquela era a imagem do duende verde que vira no desenho do homem aranha alguns anos atrás. Era isso, um duende verde sobreposto a outros chocolates de figurinhas. O doutor octopus à direita exibindo seus tentáculos metálicos, e ainda de quebra, aquele chocolate amargo estava lá, camuflado com suas cores escuras e o nome diamante negro inscrito na embalagem. Pegou o chocolate e mais uma vez observou aquela imagem de duende. Certamente era nostálgica e lembrava ao homem de trinta e poucos anos de sua adolescência. Sua avó lhe contara de alguma coisa... Não importa agora. Repeliu a lembrança com a maior intensidade que pôde. Não era hora para aquilo. Alguém já havia deixado de ser criança há muito...

***

Voltou para casa antes das nove horas, como esperava. Estacionou sua caminhonete Fiesta vermelha na garagem. Estava de volta ao lar e agora teria de por todas aquelas sacolas na dispensa e, depois, também teria de distribuir tudo provisoriamente até que sua mulher o fizesse como gostava (fato que se tornara uma espécie de acordo inconsciente entre os dois). Refrigerantes no freezer, bebidas também, até a boa e velha cerveja para as noitadas que viriam. Um arquiteto tem que ter o prazer de beber, pelo menos em seu aniversário.
Olhou para a sala de casa quando voltava para a cozinha. Uma poeira insistente continuava a se espalhar pelos ladrilhos pretos e brancos da entrada, e até o sofá estava um pouco mais desbotado do que o normal. Quando chegara aquela casa era de um tom salmão, mas agora se aproximara de um amarelo claro. Até aquele dia Mateus não soubera dizer o porquê da mudança. Talvez fosse algum produto de limpeza que estivesse sendo usado, ou talvez fosse alguma coisa natural.

***

Quando entrou no quarto, viu algo que momentaneamente lhe deixou chocado: o boneco não estava mais em cima da cama, no lençol verde musgo em que tinha certeza que o deixara. Se fosse algum tipo de brincadeira, certamente era uma das mais irritantes e, alguém pagaria muito caro por ficar jogando estes joguinhos enquanto ele vivia sua vida com seriedade. Afinal, arrombar uma casa ainda era considerado crime no país e disso, apesar de ser arquiteto e não advogado, ele tinha certeza.
Começou a procurar pelo boneco pelo quarto mesmo, debaixo da cama e, depois, dentro do armário, na cozinha, no quarto de visitas perto do banheiro com ladrilhos amarelos, na sala de TV, mas, ainda sim, nada. Nem uma leve pista de onde o boneco poderia estar. É claro que esta não teria sido a primeira vez que alguém arrombara sua casa para cometer alguns furtos. Já ocorrera uma vez. Cinco pivetes da periferia da cidade entraram pelo quintal, forçaram a porta e levaram alguns de seus relógios e mais algumas coisinhas. Foram pegos, é claro, mas algumas coisas nunca mais seriam recuperadas (como no caso do rádio relógio, agora que pensava bem). Comprara o cachorro dois meses após o incidente, para ser um cão de guarda, coisa que o fizera bem até agora. Fora só uma das medidas de segurança. Outrora era um pequeno filhote, agora parecia mais um lobo de cara-escura-sedento de sangue, até mesmo para ele que era o dono. Bruce era um bom cachorro, mas demasiadamente irritado com visitantes.
Nada na parte com concreto do quintal. Do lado esquerdo o pequeno quarto velho com quinquilharias também não tinha nada além de teias de aranha. Do lado direito o cachorro o encarava abanando o rabo sem nenhuma outra reação. Deitara-se no chão ligeiramente virado de costas, pedindo os agrados de Mateus. Divertiu-se um pouco com o cachorro antes de finalmente checar o pequeno corredor formado entre as paredes da lavanderia e a parte alta da casa. Nada havia ali além de vasos e mais vasos. Um cheiro característico do musgo estava espalhado pelo local; não era para menos, pensara, pois havia aquelas trilhas verdes crescendo por toda a parte, talvez por que aquele lugar fosse muito úmido. Havia um cano de plástico na parede, fora feito ali para poder expelir a água nos dias de faxina na cozinha. Por isso o local era muito úmido, além de ser um corredor apertado entre as construções.
Não estava lá, assim como não estivera em nenhum outro lugar. O cachorro começara a fazer certo barulho tentando chamar a atenção do dono que logo voltou andando até o centro do quintal. Teria que descer lá mais uma vez.
Naquele momento, por mais que tentasse, foi impossível reprimir aquela velha memória.
No jardim sua avó dissera. No jardim...
__Bruce! Vem cá!
Chamara o cachorro mais uma vez. Se ele ia descer até o jardim, o faria acompanhado pelo cachorro, a fim de evitar problemas com outros animais que poderiam estar vivendo no meio daquele mato alto.
Abriu o portão de ferro que estava ao lado do muro escurecido. O barulho do metal enferrujado estava mais forte do que antes agora; logo à sua frente teria de descer alguns degraus para chegar até a parte baixa da casa.
Quando finalmente terminou de descer a escadaria (quatorze degraus contados) que parecia nunca terminar, contemplou o jardim. E como havia mudado... À esquerda havia uma pequena área coberta com telhas de amianto, lá se encontrava a churrasqueira, alguns vasos de cerâmica, jogados a esquerda e à frente de uma mesa de granito velha. Várias caixas de papelão estavam empilhadas na parte de trás com uma TV velha num canto, alguns vasos com samambaias pendurados no pilar de madeira, mas nem sinal do boneco. Ele imaginava se o cachorro o havia furtado naquele meio tempo. Quando finalmente olhou para trás, viu que a vegetação tinha crescido bem mais do que ele imaginara.

__Nossa... __ Falava agora alto. Não havia mais do que cinco árvores no local, mas a sombra destas cobria tudo. Muitas flores estranhas haviam crescido de forma desgovernada abaixo das árvores, além de muitas plantas estranhas também. Um vaso sanitário, que fora jogado lá uns anos antes, agora estava com plantas saindo do acento e alguns cipós cobrindo a parte de baixo. A pequena calçada que havia sido feita para se caminhar pelo jardim não aparecia mais no meio da selva: havia desaparecido por completo em meio aos vegetais de tom verde-escuro. E nada de colorido como as roupas de algum boneco. Aquela busca estava se tornando irritante.
Aquele protótipo de jardim era o pequeno segredo obscuro de sua casa. Mateus sempre fora um homem de diversas atividades e talentos, que envolviam piano, artes plásticas em sua juventude, alguns conhecimentos de mecânica; mas quando se tratava de cuidados com plantas, ele era o que costumava chamar de zero à esquerda. Sua mulher lhe dissera isso uma vez e ele rira, mas não deixava de ser verdade quando observava o jardim, onde viviam alguns gnomos ou duendes. Sim, viveriam naquele local por causa daquele mato na altura da cintura de algum cidadão. A história que lhe fora contada por sua avó agora lhe evocava boas lembranças, sorriu sozinho e empurrou o vaso sanitário com o pé direito.
Ao fundo ainda havia uma tela que, anos atrás, separava o pequeno jardim da horta em que sua mãe cultivava alguns legumes. Lá ainda havia terra visível. Um pouco marrom e logo ao fundo, perto de uma pequena pilha de tijolos, ele viu algo que lhe chamou a atenção: algo rosa. Nada muito grande, uma pequena mancha rosada, mas... Poderia ser?
Eles gostam de fazer brincadeiras; ela dissera. Aquela voz continuava soando estupidamente em sua mente, ecoando e repercutindo como se ele fosse uma criança, fazendo um homem de trinta e poucos anos sentir-se um menino indo à escola pela primeira vez. Ela ainda havia dito mais alguma coisa naquele tempo. Se você quer que as brincadeiras acabem, você tem que pegar alguns biscoitos ou outras coisas que eles gostam e deixar debaixo da sua cama. Ai eles param de atormentar. Era estranho pensar em algo daquele tipo naquela hora. Certamente era um dos momentos mais nostálgicos pelos quais passara naquele ano e, além disso, uma euforia estava tomando lugar em sua mente junto com um medo crescente. Antes que pudesse continuar com a linha de pensamento, começou a se esgueirar pelo meio da vegetação sendo seguido pelo cachorro que abanava o rabo encarando tudo aquilo como uma brincadeira. Talvez fosse uma brincadeira, mas de grandes proporções.
Chegou até aquele portão de madeira pequeno que separava o jardim da horta. A ferradura que sua mãe pendurara ali continuava presa pelo mesmo prego, mas de tanta ferrugem, agora este estava marrom. Esgueirou-se entre o que ele lembrava serem algumas roseiras e finalmente viu a cena: o boneco estava ali, jogado como se alguém o tivesse deixado cair. Ao segurá-lo, notou que não havia nenhum rasgo na roupa do amigo Bozo (era assim que o chamava?), o que descartava a possibilidade de algum animal, fosse o gato ou o cachorro o tivessem levado para baixo. Bruce havia sido descartado também, pois sempre quando pegava algum brinquedo, a única certeza que se podia ter é de que seria retalhado até que não restassem nem frangalhos.
E, além disso, não teria como o cachorro tê-lo levado, pois o portão estava fechado. Seria impossível para um gato ter levado um brinquedo daquele tamanho também. Então o que poderia ter acontecido? A possibilidade de uma pessoa o ter feito era grande. Não havia outra explicação. Alguém havia invadido sua casa, mas... Como?
__Alguém aqui embaixo? Se for alguma brincadeira é bom aparecer logo, por que se não eu chamo a polícia.
Silêncio impera nos momentos seguintes. Um pássaro levantou voo de uma das árvores atrás dele. O cachorro olhara para trás com certa curiosidade, mas nada além daquilo ocorreu nos momentos seguintes. Não teria como uma pessoa ter entrado pela parte da frente da casa, pois tudo estava trancado. Pelo menos a porta da frente estava. Os muros da residência eram altos, mas não tão altos a ponto de uma pessoa não poder escalar ou saltar se quisesse. Talvez fosse isso que tivesse acontecido: um ou dois moleques haviam invadido a casa saltando o muro, desceram no jardim e caminharam até o portão, abriram-no e entraram em sua casa enquanto ele estivera fora, fazendo compras, mas se isso ocorrera, por que a vegetação abaixo do muro não estava amassada e, além disso, como poderiam ter passado por Bruce? Os Oito pontos que seu cunhado levara no Braço... Essa era a prova viva de que aquele cachorro poderia ser perigoso para qualquer estranho que tentasse invadir a casa. Pensar naquilo fazia que sua cabeça doesse. O jardim estava escuro demais, mesmo com a luz do pequeno poste, alguns grilos já começavam a tecer sua sinfonia noturna. O homem de trinta e poucos anos novamente cruzou a relva e passou pelo portão e trouxe consigo o cachorro, o boneco e mais perguntas.

***

Quando entrou pela porta dos fundos da casa, deixou o boneco em um dos bancos da cozinha, bebeu um copo de água e depois foi até a sala para ver alguma coisa na TV. A programação de sábado era ruim, mas seria bom para passar o tempo. Sempre era.
<Sentou-se na poltrona e ligou a televisão. O jornal da noite estava acabando. Os letreiros de crédito subiam quando Mateus teve a brilhante ideia de pegar uma cerveja. Foi até a geladeira maior, desta vez para pegar também um pouco de queijo além da bebida.
Ao passar pela entrada da cozinha percebeu que algo estava faltando ali: onde estaria o boneco agora? O banco estava fora do lugar e o palhaço de roupa cor-de-rosa não estava mais lá. Alguém estava dentro de casa, pois ele tinha certeza de que havia trancado a porta dos fundos desta vez. Às pressas, voltou pela porta da cozinha. O que viu a seguir lhe causou um choque e instantaneamente, a adrenalina corria pelo seu corpo como o veneno de um reptiliano: Todas as cadeiras estavam empilhadas em cima da mesa.
__Alguém...? __perguntou com certo receio de que alguém fosse atender seu chamado. O silêncio continuava.
Eles gostam de brincadeiras, ela dissera. Saiu da sala de jantar e foi até seu quarto perto da entrada da casa e finalmente, de dentro do cofre, pegou sua arma. Um revolver calibre trinta e oito carregado. Passou pela sala. A TV ainda estava ligada e uma música alta soava por toda a casa. Quando chegou à sala de jantar novamente em sua busca desenfreada, o choque foi ainda maior: as cadeiras haviam voltado para o lugar. Quem poderia ter feito aquilo sem barulho e em tão pouco tempo? Quanto tempo ele havia levado para fazer todo o trajeto? Trinta segundos? Menos ainda?
Caçou o suposto invasor pelo quarto de visitas. Debaixo da cama não encontrou nada. Correu com a arma sempre apontada para frente até o banheiro. O palhaço de roupa cor-de-rosa estava em cima do acento do vaso sanitário, sorrindo para ele, como se caçoasse da situação.
__Alguém aqui?! Isso não é brincadeira!
Nada. Nem uma viva alma no local além dele mesmo. Notou uma coisa curiosa no banheiro enquanto ainda tomava ar segurando a arma com firmeza: havia um papel posto no colo do boneco sentado no vaso. Aquela lista de compras que ele havia deixado no carro estava lá, e havia algo escrito em vermelho:

HAHAHA...”

Era hora de acabar com aquela história. Se alguém estava querendo brincar, ele também iria jogar aquele jogo idiota, mas se fossem eles de novo... Eles já haviam feito isso uma vez, não haviam? Haviam roubado seus lápis de cor e escrito um outro bilhete naquela época, mas agora ele não se lembrava do que havia sido. Se lembrava de ter medo o tempo todo e...
...E pegou um prato de porcelana branco, um dos melhores da casa. Sua mão começava a falhar naquele momento. Era difícil manter a firmeza. É claro, pensou ele, afinal, é assim que um homem fica quando alguém invade a sua casa. Pôs alguns biscoitos de chocolate e caramelo no prato e foi até o quarto de visitas. Sua avó dissera para deixar debaixo da cama. Levantou o lençol, e empurrou o prato para o escuro. Ligou a luz e sentou-se na cama. Passaria a noite ali se fosse necessário.

***

Patrícia chegou a sua casa no domingo de manhã. Esteve fora durante aquele sábado todo. Ficara para um curso na cidade e aproveitara para fazer uma visita a sua mãe. Quando finalmente desceu do ônibus, tomou um café em uma pequena lanchonete perto dali. Caminhou até a rua de sua casa. Junto com sua bagagem havia trazido uma surpresa para o marido. Foi até o centro comercial, um luxo que toda mulher parecia fazer questão de ter; aproveitara ao máximo o tempo que estivera fora e o continuaria fazendo, pois logo a gravidez estaria em um estágio mais avançado e ela não poderia fazer muita coisa.
A caminhonete estava lá, estacionada na garagem, e a porta, como sempre, estava trancada. Passou a chave pelo trinco e com um clique, agora estava aberta.
__Amor. Cheguei.
Nada além de silêncio em resposta ao seu chamado. Talvez seu marido estivesse nos fundos da casa. Lá era impossível escutar muita coisa. Antes que pudesse terminar seu pensamento, ouviu o barulho da descarga no banheiro. Lentamente se dirigiu para lá e, se assustou quando viu que, no vaso sanitário, repousava a figura de um palhaço sorridente com um bilhete pregado.

HAHAHA...”

A caligrafia lembrava a de uma criança em seus primeiros anos de treinamento da escrita. Aquilo não era uma brincadeira que o marido costumava fazer. Ele nunca brincava. Havia alguma coisa errada. Pegou o boneco com o bilhete e saiu do banheiro.

__...Mateus...? __chamara pelo marido, mas desta vez com certa cautela. A porta do quarto de visitas à sua frente estava fechada. Talvez ele estivesse dormindo ali, mas por que não respondera ao seu chamado? Aproximou-se da porta do quarto enquanto ouvia o barulho da descarga ressoando atrás de si. Aquela era definitivamente uma brincadeira desagradável. O banheiro não estava vazio?
Quando abriu a porta do quarto, se deparou com uma cena inusitada: o marido repousava na cama, sentado e apoiando-se contra a parede. Ele segurava o que ela pensou ser um celular no começo, mas quando prestou mais atenção, viu que era o cano de uma arma que se projetava de sua mão. Ele despertou no momento em que ela entrou no quarto. Estava com os olhos carregados por olheiras, como se tivesse passado a noite tendo pesadelos. Seu cabelo estava bagunçado e seu rosto pálido como nunca. Com um gesto, o homem de trinta e poucos anos levantou sua mão desocupada até a boca com um dedo levantado.

__sssshhhh... __ Sua mão tremia demasiadamente. __debaixo da cama... Eles chegaram aqui de noite.
__Mateus isso não tem graça, e...__viu na expressão do marido que aquilo, definitivamente não era uma brincadeira. Aos poucos ela levantou o lençol da cama para ver o que havia debaixo do local, mas não havia nada ali além de um prato branco com farelos. A descarga do banheiro soou mais uma vez. O cachorro começou a latir como nunca lá fora.

__No jardim...__O marido começou a rir como se houvesse perdido a sanidade.

Ele ria como nunca, parecia perturbado. A televisão da sala ribombava em um ritmo brasileiro também e aos poucos as batidas dos instrumentos foram se tornando mais altas e dissonantes do que os latidos do cachorro desesperado lá fora. A descarga soou mais uma vez e o prato saiu debaixo da cama se arrastando para bater na parede perto do armário.
Havia algo de realmente errado no quarto...



por: Luigi C. Domani