Conto: Eles vêm do esgoto

|
Existem coisas estranhas que acontecem com várias pessoas, em diversos lugares. As vezes acontece com um amigo seu ou com um parente. Outras vezes acontece com você. Coisas essas, que muitas vezes não conseguimos encontrar explicação que nos pareça plausível ou que nos conforme. Agora imagine: fantasmas saindo do esgoto?!

  Meu nome é Henrique, mas meus amigos me chamam de Castro. O que eu vou contar me aconteceu à uns 3 anos. Na época, faltavam 2 meses para o meu aniversário de 18 anos. Estávamos acabando de organizar a mudança na casa nova - tudo bem que eu gostava da antiga, mas eu estava feliz com essa casa também, pois meu quarto novo tinha um banheiro próprio, isso facilita quando você acorda apertado para ir ao banheiro no meio da noite. Sabe como é.
  A vizinhança nova em geral até que era boa. De um lado, um casal de idosos e quatro netas morando junto; do outro lado, mais 5 casas. As famílias até que eram bacanas... O problema era em frente. Havia uma casa muito estranha que morava uma mulher mais estranha ainda. Ninguém da rua gostava muito dela, mas por ela ter herdado a casa e não estar lá de aluguel nem nada, todos tinham de tolera-la. Todo dia de noite paravam uns tipos estranhos na frente, era muita gente entrando e saindo de lá. Uns diziam que ela vendia droga, outros diziam que a mulher prostituía as filhas, mas na real, eu não queria nem saber, só queria arrumar meu novo quarto, instalar-me confortavelmente e voltar à rotina de rolê com a galera.
  Já haviam se passado 3 semanas morando na nova casa e até essa altura tudo corria normalmente, salvo os dias em que baixava a polícia na casa em frente e se ouviam uns barracos de madrugada. Ah, tinha também a velha ao lado que tinha alguma doença, sei la o que era, e fumava maconha "medicinalmente" para controlar. Não preciso nem falar que a fumaça vinha toda justamente para a janela do meu quarto. Mesmo quando estava fechada, não sei como raios aquela porcaria entrava. E a maldita acordava 5 da madrugada para fumar o cachimbo dela, eu acordava e pensava estar na Jamaica. Tirando esses pormenores até que estava sendo agradável morar ali. Ficava mais perto do centro da cidade, era melhor para mim quando voltava das baladas de madrugada à pé.
  Mas, quando tudo parecia normal em minha vida na medida do possível, foi aí que a "merda" desceu pelo cano.
  Um dia, por volta das 20hrs, voltando para casa de um aniversário de uma amiga, eu encontrei em frente ao portão de casa, a mulher estranha que morava em frente, o nome dela eu não sei, mas sei que o povo da rua chamava ela de cafetina. Ela estava deixando alguma coisa bem no pé do portão. Quando eu fui chegando, ela virou e me viu, então saiu correndo rumo à sua casa. Era uma mulher muito estranha mesmo, com a perna cheia de varizes, o cabelo claro como palha e ressecado, a pele vermelha, igual quando um alemão vai para a praia. Muito esquisitona mesmo.
  Cheguei no portão e olhei para baixo para ver o que ela estava fazendo lá. Havia um lance muito tosco. Tinha dois limões e pepino no meio e um saquinho sujo do lado. Estava parecendo um pênis vegetal. Ao ver comecei a rir e ao mesmo tempo fiquei meio preocupado, será que a mulher era uma macumbeira ou algo do tipo? Sei lá, eu não era muito supersticioso mas não queria saber muito dessas coisas não.
  Eu chutei aquelas coisas para a rua em direção à casa dela. Eu pude ver ela me observando pela janela. Haviam 2 rapazes e uma garota em frente a casa dela bebendo e conversando. Quando os limões chegaram lá rolando, eles apenas observaram e depois voltaram a conversar. Era só o que me falava agora, essa louca colocando coisas em frente à minha casa, eu hein.
  Entrei para casa e subi para o meu quarto trocar de roupa e pôr algo mais confortável. Quando estava me trocando, ouvi o interfone tocar. Coloquei a camisa rapidamente e fui atender. Era a cafetina, na maior cara de pau no meu portão. Fui ver o que ela queria, talvez se explicar. Cheguei no portão e ela disse:
-Você por um acaso tem algum gato? - essa eu não entendi.
-Não, não tenho não - respondi.
-É que há um buraco de esgoto no fundo do meu quintal, antes saíam ratos, mas eu pus uma grade. Agora não param de sair baratas - disparou falar e cuspir -  Já cansei de reclamar com a prefeitura e eles não fazem nada.
  Que nojo. E onde que o gato entra nessa história? O que ela estava querendo comigo? Primeiro põe um negócio muito suspeito na porta de minha casa, agora vem com papo estranho.
-E onde entra a parte do gato? - perguntei.
-Eu tenho um cachorro mas ele é enjoado, não come mais as baratas que saem, eu queria um gato para por ele lá.
-Olha dona, eu não tenho gato não e também não acredito que um gato vá querer comer baratas. Se me dá licença... - melhor não dar papo para esse tipo de gente.
  Ela apenas me encarou nos olhos por dois segundos e virou-se rumo ao outro lado da rua.
-Tchau cafetina. - debochei meio baixinho, mas acho que ela ouviu algo, pois deu uma leve olhada para trás.
  Eu sei que eu sou debochado, meus pais reprovam esse tipo de atitude minha, mas eles estavam fora de casa mesmo. Hehe. Contudo, acho que foi um erro meu ter mexido com essa mulher. Uma leve suspeita apenas.
  Já devia ser por volta de 1h e meia da manhã e eu estava sem sono. A linha de telefone já havia sido instalada mas ainda não tinha chegado o modem da banda larga. Então, sem internet, só me restava ficar no celular; um iPhone (que eu havia ganhado de presente de aniversário adiantado) e jogar joguinhos nele.
 Estava eu lá deitado e jogando, quando ouço um barulho no telhado, como se estivesse alguém andando em cima.
-Mas que porcaria é essa? - falei.
  Abri a porta do quarto e olhei para o corredor. Meus pais estavam dormindo, a porta estava trancada. Voltei para o meu quarto e fiquei em silêncio para ver se ouvia algo mais. Nem um Piu. Voltei a mexer no celular e pensei comigo mesmo: "Deve ser um gato". Se bem que pelo barulho parecia mais ser um tigre.
  Foi só eu voltar a mexer no celular que ouvi algo como passos pesados acima de mim novamente. Droga.
  Na falta de um taco de beisebol, catei um rodo que estava no banheiro. Abri a janela e olhei para cima com todo cuidado. Apenas escuridão. Então peguei o cabo do rodo e dei umas batidas na beirada do telhado. Ouvi um barulho em cima e de repente uma telha escorregou e voou direto para o quintal da velha maconheira. Sorte que não acertou minha cabeça, pensei.
  Imediatamente tirei a cara de fora da janela e a tranquei e fechei a persiana. O que poderia estar lá em cima? Será um bicho ou algum ladrão?
  Meu coração começava a bater mais forte, não tanto por medo, mas por adrenalina. Fui até o quarto dos meus pais com o rodo na mão e bati na porta. Como não atenderam, bati uma segunda e terceira vez. Meu pai abriu a porta com um olho fechado e outro meio aberto. Contei para ele sobre os barulhos no teto.
-Deve ser um gambá - ele disse.
  Gambá? Acho que meu pai ainda pensa que está morando no interiorzão onde ele nasceu. Fala sério.
-E se não for? - falei.
-Não se preocupe, a porta é bem resistente e as janelas lá embaixo têm grades. Vou voltar a dormir, amanhã tenho que acordar cedo.
  Ótimo. Por que os pais têm essa mania de nunca dar ouvidos aos filhos? Até parece aqueles filmes de terror em que o mocinho tenta avisar para todo mundo sobre o monstro mas ninguém acredita nele, só acreditam quando estão sendo engolidos e já é tarde demais.
  Mas e se for pior que um monstro? e se for um ladrão querendo roubar meu celular novo? Nem morto vou deixar ninguém levar nada meu. Voltei para o meu quarto e abri a janela, deixando apenas o vidro fechado e espiei para fora. Nada, apenas via abaixo da janela o meu quintal, à direita as luzes da rua e a frente o telhado e o quintal do vizinho. Meu quarto ficava no segundo andar.
  Enquanto eu me virava para voltar à cama, um barulho de algo descendo arranhando a parede, um som abafado do lado de fora chamou minha atenção. Meu coração voltou a bater rápido.
  Olhei para fora para o lado que veio o som e nada. Olhei para baixo também nada. Tomei coragem e abri o vidro. Uma brisa fresca bateu em meu rosto e entrou pelo quarto. Nem os grilos que ficavam no gramado do quintal estavam cantando. Um silêncio atipicamente ensurdecedor estava presente. Me debrucei na janela e refleti que devia ser bobagem, apesar de tudo, aquele era um bairro tranquilo, sem queixas de furtos nem nada. Por isso nos mudamos para lá. Foi quando algo chamou minha atenção. Embaixo havia uma arvorezinha no quintal de casa e parecia haver algo lá, com um par de olhos de gato brilhando. Forcei a vista e estiquei o pescoço para baixo para tentar entender o que era realmente. Fiquei encarando aqueles olhos brilhantes por quase um minuto. Provável que era algum gato obeso que estava destruindo o meu telhado.
  Então o "gato" fez um barulho muito estranho, como um grunhido grave e saiu rápido da moita. Só deu para ver um vulto grande saindo de lá em direção mais ao fundo do quintal, que estava escuro. E não parecia ser um gato. A silhueta era do tamanho da de uma pessoa, só que saiu de lá incrivelmente rápido.
  Quando vi aquilo me assustei e saí rapidamente para trás, batendo minha orelha esquerda na beirada da janela. Doeu muito, ela ficou ardendo e muito quente.
  Tranquei rapidamente a janela e a porta do meu quarto. Havia um copo de água cheio em cima da cômoda e havia um banheiro de uso só meu lá. Não precisaria sair até que amanhecesse o dia, creio eu. Melhor ficar assim. Não é medo, é cautela. Seja lá o que for, deixa ir embora.
  Deitei na cama e fiquei um tempo pensando sobre o assunto, até meus pensamentos começaram a vagar e começar a pegar no sono. Não percebi quando que foi, mas acabei apagando.
  Acordei ouvindo uns barulhos estranhos, meio que ecos. A minha primeira reação foi pegar o celular e olhar as horas. Exatamente 3:33. Engraçado, se tivesse no Twitter iria postar as horas.
  Continuei ouvindo o barulho. Muito estranho, parecia um barulho grave e com ecos. Levantei e fui andando tentando descobrir de onde vinha. Não sei porque mas ele parecia estar mais alto no rumo do meu banheiro. A porta dele estava entreaberta deixando a luz acesa passar por um vão. Gosto de dormir assim, luz do quarto apagada e a luz do banheiro acesa, deixando só um pouco de luz entrar.
 Chegando ao meu banheiro privativo, os barulhos se tornaram mais perceptíveis. Era uma espécie de "brom", "brom", "brom"... que ficava se repetindo, parecia um barulho vindo de dentro de um cano. Olhei para a pia, mais especificamente para o buraco do ralo. O Barulho saía mais forte de lá. Fui chegando o rosto perto para ouvir, fui abaixando o ouvido em direção da pia. Quando cheguei o rosto no nível da pia o barulho pareceu parar.
  Franzi a testa e levantei o rosto para cima novamente. Me olhei no espelho. O meu cabelo estava um caos. Liguei a torneira e fiz uma concha com as mãos segurando a água para lavar o rosto. Fiz isso três vezes, quando então notei que a água estava subindo na pia e quase transbordando. Desliguei a torneira e fiquei olhando a água descer lentamente. Quando estava quase acabando, subiu umas bolhas na água e junto com elas um cheiro horrível. Tapei meu nariz e me afastei.
- Que cheiro horrível - escapou meu pensamento.
  O cheiro parecia de sardinha podre misturado com alguma coisa morta. Catei o tampão da pia que estava na beirada da janelinha e tapei a pia. Depois espirrei no banheiro um pouco de um perfume meu que não usava mais, na tentativa de amenizar aquele cheiro tenebroso.
  Quando abaixaram-se as gotículas do perfume que estavam em suspensão no banheiro e faziam meu olho arder, eu entrei novamente para conferir se o cheiro havia passado. Foi quando um "blup" bem alto saiu da privada. Tomei um susto. Com esse barulho, desceu pela metade o nível da água que fica parada na privada e ficou la balançando de um lado para o outro. Sorte que dessa vez não veio aquele cheiro desagradável, sentia apenas o cheiro forte do perfume.
-Essa noite parece que não acaba, só quero dormir - me lamentei.
  Voltei para a cama, parecia que tinha ficado preso no meu nariz aquele cheiro de sardinha enlatada no inferno. Muito ruim. A única coisa que me restava era tentar dormir de novo, e foi o que fiz.
  Outra vez o barulho. Dessa vez a preguiça não me deixou levantar. Pus o travesseiro em cima da cabeça para tapar a orelha. Me veio na cabeça a cafetina louca do outro lado da rua. Lembrei dos ratos invadindo o quintal dela. Será que poderiam sair ratos e baratas do meu ralo? Senti um arrepio só de pensar em pernas de baratas andando em mim. Que droga. Decidi me levantar e olhar novamente.
  Fui andando novamente em direção ao banheiro na ponta dos pés. Ao chegar no portal, eu parei e olhei para a pia. O tampão do ralo ainda estava lá. Tudo normal, ao menos era o que parecia, o barulho havia parado.
  Eu já ia me virando para trás rumo ao quarto, quando meus pés travaram no lugar. Tive aquela estranha sensação de estar sendo observado. Parecia um negócio muito estranho atrás do meu pescoço. Com a visão periférica do olho esquerdo tive a impressão de ver um vulto no chão do chuveiro. O vidro do box era turvo e não dava para ver direito o que era. Decidi me virar rapidamente e ir ver do que se tratava.
  Minha intuição dizia o contrário, para não ir, mas a curiosidade venceu. Me virei e fui rapidamente em direção ao box, que ficava à 3 passos a esquerda da porta. Puxei a porta de vidro para a direita abrindo-a e olhei para baixo.
  O que eu vi me fez dar um pulo para trás.
  Parecia uma mão marrom podre saindo do ralo do chuveiro. Quando abri o box, "aquilo" voltou rapidamente para dentro do buraco, deixando a tampa do escoador semiaberta. Meu coração batia forte, quase saindo pela goela. Minhas pernas me traíram; quando eu mais precisei não conseguia correr. Teria eu visto mesmo o que eu pensei ter visto ou seria excesso de sono e imaginação? Talvez uma Aranha de esgoto? Sei lá...
  O cheiro de sardinha podre novamente tomou conta do banheiro.

Sinceramente, eu estava com as mãos tremendo. Eu sei o que eu vi, mas sabe como é. Vi mas não vi.
A primeira coisa que eu fiz foi sair de lá, é claro! Não sou louco de ficar ali pra descobrir do que realmente se trata.
  Desci até a sala e sentei no sofá. Fiquei refletindo sobre o que havia acontecido e as probabilidades de eu estar ficando maluco. Mãos não saem de ralos, quer dizer... é fisicamente impossível. Então o que era aquilo? Se não foi alucinação, maluquice ou sono, então tem alguma explicação razoável para tudo isso.
  Me levantei e resolvi voltar lá e tentar descobrir algo. O relógio na parede da copa marcava quase 5 e meia da manhã. Fiquei tanto tempo pensando que nem vi a hora passar, o cansaço no meu corpo resultante dessa noite já estava me afetando, eu me sentia estranho.
  Cheguei à porta do meu quarto, a luz dele estava apagada; só se via um facho de luz que vinha do banheiro cortando o quarto ao meio. Entrei lentamente e olhei para os dois lados apesar de não enxergar quase nada lá. Acendi a luz. Não havia nada de estranho lá aparentemente. Me abaixei para conferir embaixo da cama e estava ok: nenhum monstro. Agora a parte mais difícil foi voltar a conferir o banheiro, mas reuni toda coragem que podia e fui lá novamente.
  Só de chegar perto da porta já senti aquele cheiro insuportável. Bem, dormindo eu sei que não estou, pois esse cheiro medonho faria qualquer um acordar.
  O ralo do chuveiro estava semi-tampado, do mesmo jeito que estava na hora que sumi de lá. É, não estou louco, pelo menos eu acho. Com o rodo eu empurrei de volta o tampo. Repeti o processo de espirrar o perfume lá dentro, e depois, antes de mais nada, eu tranquei o banheiro com a chave e me certifiquei de que estava bem trancada dando uns puxões na maçaneta. Depois, pequei minha coberta e fui para o quarto vago de minha irmã, a Isabella. Ela faz faculdade de letras em São Paulo capital, e está morando com mais duas amigas lá, e vem para casa apenas para passar um final de semana sim e outro não.
  A casa nova possuía duas suítes com banheiro. Uma era a "top" com hidro e tudo mais, E é claro, essa ficou com meus pais; a outra com um banheiro simples, apenas com chuveiro, privada e pia ficou comigo. Minha irmã, como não está morando conosco agora, ficou com o que restou, hehe.
  O lado bom é que não tinha banheiro nesse quarto, então eu poderia tirar uma soneca tranquilo sem medo de ser atacado por nenhuma mão mutante do esgoto.
  Deitei na cama e apaguei de tanto cansaço. Acordei com a empregada perguntando para mim o que eu estava fazendo dormindo lá. Povo curioso.. nem se pode mais tirar uma soneca em um quarto alheio sem ser incomodado?
  Dei um pulo quando olhei a hora no celular. Já eram quase 3 da tarde.
-Caramba, dormi demais!
  Voei para o meu quarto e troquei de roupa, e é claro, dei uma conferida para ver se o banheiro ainda estava trancado. Preferi descer e usar o banheiro de visitas, mais seguro. Comi umas bolachas, as porcariadas de sempre pra tapear a fome e saí.
  Estava caminhando na rua e pensando na noite anterior. E se acontecer de novo, e se não foi só um episódio isolado? Além dessas preocupações, começou a me aflorar outro tipo de sentimento quanto à isso: Curiosidade. Sim, quando passa a noite e acaba a escuridão, todo mundo fica metido a "caça fantasmas".
  Uma coisa é certa: eu precisava de ajuda! Você também. Se você sofre com assombrações, vampiros na chaminé, pererês na janela e lobisomens no quintal, não sofra sozinho, procure ajuda. Hehe.
  Contar pros meus pais estava fora de cogitação; meu pai ia falar que era um texugo ou qualquer outro bicho e minha mãe ia se desesperar e me mandar para o psiquiatra. Perca total, e eu também já passei da idade de correr para o colo de papai e mamãe.. agora é hora de enfrentar os medos!
  Bem, na teoria é fácil, mas na prática a coisa pega.
  Estava filosofando sobre o assunto quando lembrei do Marquinho Ruéla, ele sempre foi chegado nessas paradas sobrenaturais, então ele devia saber de alguma coisa e talvez até me ajudar a me safar dessa. Eu pensei tanto no assunto que nem vi o quanto tinha andado, eu já estava perto do centro da cidade, e por consequência, perto da casa do Ruéla!
  Estava chegando na casa dele quando dei de topo com o próprio saindo de lá. Camiseta rasgada do Misfits, um gorro preto detonado, cheio daquelas "bolinha" que junta quando estraga a roupa, e tênis remendado com silver tape. Figuraça.
-Fala ai, Castro, belezinha cara?! Tá sumido.
-Tranquilo. - falei - É, eu tô mesmo...
-Vai onde?
-Então... eu estava justamente indo na sua casa.
-A é? que manda?
  Como explicar que tem uma mão podrona saindo do seu banheiro sem parecer louco ou idiota?
-Então, você é um dos caras mais estudados e sabedores das coisas estranhas que eu conheço... você é bem esperto Ruéla Man.
-Esperto? Cara eu repeti o último ano e meu pai está quase me espancando de raiva de pagar o cursinho para nada!
Bola fora.
-Você não entendeu o que eu quis dizer - eu sei contornar as situações - você só não teve tempo de se preparar direito, você é um cara sagaz, eu sei disso!
-Continue, continue...
-Então Ruélones... eu preciso de um conselho seu
-Diga, diga... - Acho que o ego desse cara tá meio inflado.
-Você é um cara ligado nessas paradas do sobrenatural não é? Saca tudo esses baratos de assombração, zumbi e ETs, não é mesmo?
-Sei sim cara, eu sempre vejo o Zona 33, conhece?
-Não conheço não, o que é isso, programa de TV? - perguntei.
-Nada não, esquece!

  Bom, para resumir e não tornar isso maior do que vai ficar, eu expliquei o que havia acontecido pra ele. No começo ele me zoou um pouco, disse que tinha um zumbi morando no meu banheiro, que se fosse ele ia fazer a mão bater uma p*nhetinha pra ele e coisas do tipo. Mas, depois pareceu se interessar pelo assunto, e se auto-convidou para passar a noite na minha casa e investigar mais. Quando éramos mais novos e estudávamos juntos, ele viva dormindo em casa. Acho que devia ser por causa da minha irmã, ele sempre ficava babando nela. Mas depois com o tempo a gente se afastou um pouco, ele começou a curtir umas paradas de punk e a andar com um galera diferente, e eu segui por outro rumo, mas continuamos amigos mesmo assim.
  Depois disso, entrei na casa dele, ficamos conversando por um tempo, botando o papo em dia e nem vi a hora passar. Depois ele foi pegar algumas coisas dele, pôs em uma mochila e fomos para a minha casa.
  Chegando em casa, subimos para o meu quarto, ele jogou a mochila dele em cima da minha cama, parecia estar pesada e fez um barulho de metal.
-Que isso cara, ta trazendo uma bigorna? - perguntei
-Não, são só meus equipamentos!
  Ele foi até a porta do banheiro, curioso pela história que eu contei. Destrancou e deu um pulo pra trás.
 -Cara, o que você andou comendo? Isso aqui tá podre!
-Não fui eu - falei - é aquela porcaria de cheiro que saiu da pia.
  Ele deu uma olhada em volta, foi para o box, agachou-se e analisou o ralo do chuveiro.
-Acho que pelo tamanho do encanamento abaixo não poderia ser uma pessoa que passou a mão ai.
-Acho que isso é meio óbvio, Einstein.
-Isso diminui as possibilidades, eu só vejo duas possíveis causas nesse momento.
-Quais? - perguntei
-A primeira é de uma colônia de duendes viverem na sua casa - coçou a cabeça - você notou suas coisas sumirem?
-Humm... acho que não. Não notei nada sumir não.
-Então isso nos leva à outra única alternativa.
-Qual?
-Fantasmas! - quando ele disse isso, me deu um arrepio na espinha.
-Sai fora - bati na madeira da cômoda três vezes.
-É sério, essas coisas aconteceram de madrugada, não é? E uma mão saiu do nada... tem algo estranho.
-Tomara que eu esteja louco... - só me faltava essa. Morro de medo dessas coisas.
  Saí do quarto e fui pegar um colchão para ele dormir. A hora hoje parecia ter passado voando, é incrível como isso acontece quando a gente acorda tarde, muda totalmente  a percepção do tempo...
  A hora passou, meus pais chegaram em casa, e fizeram aqueles comentários básicos do tipo: "nossa Marquinhos, como você cresceu, tá diferente" e tal tal...
  Aí veio a bomba: Meus pais iriam aproveitar que era sexta e ir para a capital, passar o final de semana na casa de uns parentes, e já tinham até deixado as malas prontas.
-Mas ninguém me falou nada - fiquei indignado, não por eles não terem me avisado ou convidado, mas por pensar em ficar em casa sozinho no final de semana.
-Eu ia te avisar, mas você não estava no seu quarto. Pulou cedo da cama cedo? - droga, eu estava dormindo no quarto da minha irmã.
-Mais ou menos isso - Bom, pelo menos essa noite o Ruéla vai dormir aqui. Se é pra se f*der, que não seja sozinho. Da menos medo quando você vê outra pessoa se ferrando junto.
-Só uma coisa - meu pai disse - não é pra usar o meu banheiro, você tem o seu. Ficou um cheiro horrível e não queria sair de jeito nenhum.
-Não fui eu, deve ter sido o "gambá" de ontem à noite - ironizei
-Engraçadinho.
  Por volta das 22 horas meus pais saíram de viagem. Pedimos lanches e passamos um tempo descontraindo jogando Call Of Duty na sala. Até estávamos esquecendo do motivo de Ruéla estar lá, quando ouvimos um barulho vindo de cima das escadas. Um olhou para a cara do outro sem falar nada, apenas soltamos o controle e fomos indo devagar em direção às escadas.
  Impressionante. Só você querer ir em silêncio para a escada começar a ranger a cada passo que você dá. Muito escroto isso, agora nunca mais critico os clichês de filmes de terror, eles realmente podem acontecer.
  Chegando no corredor tava tudo silencioso. Eu virei, olhei para o Ruéla e encolhi os ombros gesticulando não saber do que se passava. Quando eu fiz isso a luz apagou e acendeu.
  Dessa vez minha perna não falhou, corri para baixo quase atropelando o pobre do Ruéla. Não sou um bom companheiro nessas horas. Só escutei ele pra trás reclamando.
-Ei cara, você quase me matou lá atrás.. acho que foi só uma falha na fiação. Não vi nada de mais lá.
-Foi só o reflexo - falei
-Você precisa relaxar manolo, ser corajoso. Por isso você tá solteiro, mulher gosta de caras corajosos igual a mim.
-Epa, peraí - agora esse maldito mexeu no calo - quem aqui é covarde? Foi uma reação comum, só isso!
  Enquanto nós discutíamos, um som ecoou novamente vindo lá de cima. Dessa vez deu para ouvir certinho o que era: O barulho de alguém dando descarga. Detalhe: Só havíamos nós dois na casa nessa hora.
  Nós dois ficamos em silêncio.
-Eu te falei que tinha alguma coisa estranha!
-Mano, se eu te contar uma coisa - Ruéla pôs a mão na barriga - você não vai acreditar
   Eu já imaginava o que era. Desde pequeno, quando ele ficava nervoso dava uma disenteria nele. Ele pagou de machão até agora mas vai entregar os pontos. Sabia.
-Se eu fosse você ia no mato. Eu que não iria no banheiro nem me pagando.
-Relaxa cara, tem mais banheiros na tua casa, não tem? - ele estava se contorcendo agora, com uma das mãos na barriga e a outra apoiando na mesa.
-Tem um virando ali à esquerda - indiquei com a mão
-Certo, então eu vou lá e você fica na porta vigiando qualquer coisa estranha.
-Cara, na moral - falei - não sou guarda-costas de banheiro.
-Velho só tem você e eu... - parou pra pensar um pouco - e mais alguma coisa lá, sei lá, me ajuda vai!
-OK, anda rápido!
  Olha, eu sei que isso está ficando longo, mas foi o final de semana mais louco da minha vida. Compreendam. Você não iria querer estar no meu lugar, te garanto.
  Fiquei na porta do banheiro esperando ele. Até esse momento pareceu estar tudo bem, até que pensamentos nauseabundos tomaram conta da minha cabeça. E se foi um ladrão que tava lá em cima e deu uma descarga? As vezes o cara tava lá soltando um barrão. Outro dia li em um site que um bandido invadiu a casa de uma mulher nos Estados Unidos e ainda varreu a cozinha dela. Nunca se sabe né? Estava pensando nessas coisas quando ouvi o Ruéla gritar do lado de dentro do banheiro. Não sei a diferença entre a hora que ele gritou e a hora que ele saiu, pois foi muito rápido, ele ganhou de mim na agilidade. Junto com ele, veio um tremendo fedor.
-Caramba mano que fed... - não deu nem tempo de eu terminar de falar. Só percebi ele passando por mim com a bunda de fora. Que visão do inferno.
  Eu fui atrás para ver o que aconteceu, deve ter sido grave porque ele quase arrombou a porta para sair pra fora... pelado.
-Cara o que você tá aprontando? O que aconteceu? - Se alguém me ver aqui fora nessa cena lamentável, é ai que não arrumo uma namorada mesmo.
-Eu... falei... que ia... te ajudar... mas quero.... ir... embora... - ele estava soluçando e chorando.
-O que que aconteceu? Por que? Você não pode me deixar aqui - agora eu que comecei a me desesperar - e onde fica a amizade? Me conta o que aconteceu por favor.
  Ele demorou um pouco para se recompor, mas eu consegui convencer o cara a entrar pelo menos na sala, afinal ele estava pelado. O muro tem umas partes com grade e dá pra ver mais ou menos aqui dentro. Como eu disse: ia pegar muito mal pra mim.
  Depois de se acalmar um pouco, ele resolveu abrir o bico.
-Conta logo cara, a gente tá perdendo tempo, e se for alguma pessoa lá em cima? Já parou para pensar no perigo?
-Não é uma pessoa não. - ele afirmou com tanta convicção que confesso que isso me chocou um pouco.
-O que você quer dizer?
-Aquela hora - falou passando a mão no rosto - não gosto nem de lembrar.
-Fala logo, você está me deixando nervoso - sim, eu estava ficando mesmo
  Ele começou a explicar, sentado no sofá com uma almofada no colo tapando o dito cujo. Uma cena triste.
-Eu estava sentado na privada, com uma tremenda dor de barriga tentando esquecer que você estava do lado de fora. Eu não consigo cagar com ninguém me vigiando. Aí de repente senti algo encostando na minha bunda como se alguém tivesse passado a mão... Eu abri as pernas e olhei pra baixo.
-E ai, e ai? - tava me roendo de curiosidade
-Tinha um cara me olhando
-Hã? como um cara te olhando?
-Tinha um cara me olhando dentro da privada. E ele não tinha olhos - isso foi bem estranho
-Como ele estava te olhando se ele não tinha olhos? - perguntei
-Cara, é sério. Parecia uma caveira podre me encarando - juro que vi mais uma lágrima caindo do olho do Ruéla nessa hora.
  Normalmente eu acharia que ele estava ficando louco ou usou alguma droga da pesada. Mas não hoje, eu sei o que passei ontem. Acho que agora a coisa ficou séria.
-O que a gente vai fazer cara? - ele me perguntou
-A gente eu não sei, mas você vai vestir uma calça.
-Ela ficou no banheiro. Lá eu não volto - e nem eu.
-Então a única alternativa é você pegar outra peça de roupa na sua mochila, que ficou.... no meu quarto.
  A gente se encarou e eu sei exatamente o que ele pensou. E a coragem para ir lá? Apesar de tudo, quem está na chuva é para se molhar, e ele sabia que não poderia fugir da minha casa nu da cintura para baixo. Capaz de ser molestado por algum doidão no meio do caminho para a casa dele.
  Subimos para o quarto, eu fui na frente para não ter que encarar aquela bunda seca na minha frente. Não tivemos nenhuma surpresa pelo caminho. Entrei no quarto e acendi a luz, felizmente nenhuma atividade paranormal. Olhei para o Ruéla e notei que ele estava segurando algo, era um saleiro.
-Que é isso filhote? Vai fazer uma salada?
-Vou. Uma salada de Poltergeist. Você nunca assistiu supernatural não? Sal faz milagres com espíritos.
-Verdade, garoto esperto - me lembrei, eu também assistia.
  Ele pegou uma bermuda de dentro da mochila e a vestiu, e em seguida tirou da mochila duas barrinhas de ferro meio enferrujadas.
-Que isso, vai matar alguém de tétano?
-Não cara, você tá por fora. Ferro espanta o mal. Por isso as barras das celas da prisão são feitas de ferro, para conter o mal.
-Você é esperto cara. Podia se formar em alguma faculdade de caçador de fantasma se isso existisse. Hahaha.
-Ele ficou sério. Eu pensei que era porque ele não tinha gostado da brincadeira. Então ele apenas levantou a mão segurando uma das barrinhas de ferro e apontou para trás do meu ombro. Nessa hora senti meu sangue gelar. Viro ou não viro?

  Quando me virei deu tempo apenas de ver um vulto que desapareceu no ar. Eu pulei para trás e peguei o saleiro da mão do Ruéla e comecei a salpicar o ar para todo lado. O medo era tanto que nem saímos do quarto e ficamos contra a parede com medo de que algo aparecesse por trás de nós.
-Cara você tá ferrado - ele me falou
-Só eu?  Você também está aqui, esqueceu?
-Mas não é a minha casa que está mal-assombrada. - droga, isso é verdade. - Por um acaso alguém morreu nessa casa, era um cemitério ou algum centro de rituais macabros ou algo do tipo?
-Não, eu tenho certeza, eu ouvi meu pai comentar quando ia comprar. A casa é novinha em folha e antigamente era um terreno de pastagem. Todas as casas da rua são novas, menos a da mulher estranha em frente que tá faz tempo e... - me veio um estalo na mente.
-E?
-Um segundo... Isso poderia ser causado por alguma obra de feitiçaria, vudu ou algo do tipo?
-É bem possível, já vi vários casos de assombrações causados por feitiçaria e objetos amaldiçoados.
-Filha da P*ta - enchi a boca falar xingar com gosto. - foi aquela velha miserável, só pode ter sido ela.
-Que velha?
-Aquela desgraçada em frente, dona daquele mausoléu. - eu estava rangendo os dentes de raiva - ontem eu peguei ela fazendo um barato muito suspeito na frente da minha casa. E sei lá, também acho que fui meio rude com ela... será que ela fez alguma mandinga louca pra mim?
-Cara, só sei que não queria estar na sua pele.
-P*rra, me ajuda, da uma luz. O que eu faço agora?
  Nesse momento a luz piscou, igual aquela outra vez. Olhamos um para o outro de novo. Foi quando ele olhou para baixo e começou a gritar que nem uma menininha. Eu olhei para baixo e gritei junto. Havia uma mão saída do chão segurando o pé dele. A maldita mão podre. Instintivamente ele jogou a barra que estava em seu poder no rumo da mão que estava segurando o seu pé, mas acabou acertando nele mesmo. A mão havia desaparecido. Só um comentário: com a força que ele jogou, deve ter doído pra car*lho.
  Mais uma vez corremos para baixo e saímos para fora da casa. Isso já está ficando redundante e cansativo.
-Velho, que piração. Eu sou ateu mas hoje eu vou rezar - disse ele.
  Olhei para o pé dele. Tava roxo e com um corte onde ele jogou o ferro.
-Vai tratar isso mano, teu pé vai ficar podre... que nem aquela mão maldita.
-Cara, eu to tão assustado que nem to sentindo dor alguma. Nem quando eu fui operar de fimose eu fiquei com tanto medo!
-Você não precisava me contar isso - não mesmo, vou ter mais pesadelos com essa informação do que com a mão, eu acho.
-A coisa aqui tá seria, vamos precisar de reforço. Reforço de peso.
-Reforço? - o que ele quer dizer com isso?
-Liga pro Tiago Saci.
  Droga, lá vamos nós de novo. Quando eu procurava alguém que manjasse dos paranauês paranormais, eu pensei no Marquinho Ruéla, mas tinha me esquecido do Tiago Saci. Acho que talvez porque ele é uma figura totalmente vetada de aparecer aqui em casa, sério mesmo. Pesadelo total aguentar as pirações e os papos daquele maluco.
-Você tá louco? - gritei
-É a única solução. Tenho certeza que ele é o único que vai saber resolver o teu problema.
  Droga.

Certo, analisando a situação, estou eu aqui com um cara que está tão ou mais assustado do que eu, e certamente não vai poder fazer nada quanto ao problema. Meus pais estão viajando e só voltam após o final de semana. Aqui fora está começando a ficar frio pra c*ralho e uma hora ou outra, vamos ter que dormir. Se eu dormir dentro de casa corro o risco de ser molestado por uma mão fantasma. Pior não pode ficar, então vou aceitar o conselho do Ruéla.
-Então liga pra ele, vai - falei.
-Ligar que jeito?
-Com um trombone. - sarcasmo on - É claro que com um telefone, um celular, o que for!
-Errrr! eu sei como que liga, lesado. Estou querendo te dizer que ele não tem telefone, ou pelo menos eu não sei qual é.
-Isso é um problema.
-Mas o degas aqui sabe onde ele mora! - falou o Ruéla, batendo no peito.
  Só me faltava essa. Eu já estava relutante em me meter com aquela figura estranha e agora ainda vou ter que ir atrás dele. Droga vezes droga.
-Fica aonde mesmo? - perguntei
-Deixa-me ver... segue aqui, vira ali, desce lá... fica à uns 10 quarteirões daqui.
  Nessa hora pensei muito seriamente em atravessar a rua e forçar aquela velha louca a desfazer essa macumba, vodu ou o que quer que seja, nem que fosse na porrada. Mas é claro que uma pessoa civilizada não poderia fazer isso. Não tenho como provar que era ela a culpada e nem tinha certeza absoluta disso. E outra, se eu fizesse isso correria o risco de ser linchado pela cambada de manos que ficam lá.
-Bom, melhor começar a andar agora. Vou trancar a porta. - falei indo em direção à porta aberta da sala.
-Beleza, eu vou assim mesmo - falou Ruéla esfregando os braços para esquentar-se - não subo lá de volta nem a pau.
-Você que sabe, se esquente andando. - falei.
  Saímos de lá, parece que saiu um peso enorme de minhas costas. O lugar estava com um clima pesadasso, e o pior de tudo é que é justo a minha casa. Eu durmo lá, caramba. Fomos seguindo o caminho, falando bobagens, tentando mudar um pouco o clima focando em outros tipos de assuntos. Eu nunca pensei que podia rolar essas coisas de verdade com alguém.. Será que eu não frequentei muito às missas de domingo? Foi aquela vez que comunguei sem me confessar? Sei lá mano, muitas tretas.
  Estávamos divagando e jogando papo fora quando de repente percebi que estávamos numa quebrada bem estranha. Devia ter uns 3 bares um ao lado do outro, tudo com aqueles tiozões chegados numa cachacinha marota. Um bêbado mijado no chão. Uns cachorros babando ao lado de uma churrasqueira improvisada que soltava um fumação. Maldita fumaça quase me sufoquei com ela, encobria metade da rua, isso poderia causar um acidente. Isso é, se tivesse passando algum carro por ali...
-Ei Ruéla, que raio de lugar que você tá levando a gente? - perguntei quase cochichando, vai que algum maluco de lá ouve e invoca comigo.
-Fica frio, é logo ali - e apontou para o rumo do local.
  No caminho tinha uma tiazona enorme espancando um bêbado. Deve ser o ex-marido dela que gastou o dinheiro da pensão com cachaça ou algo do tipo, haha.
  Finalmente chegamos ao local. Parecia mais um terreno baldio, ou um terreno invadido. A entrada era uma parte arrombada no muro de concreto. Olhei para dentro, tinha um fiat 157 semi-desmanchado em um canto, uma árvore velha sem as folhas, um monte de saibro em outro canto e entulho para todo lado. Mais ao fundo estava a casinha, dava para ver luz acesa na janela, então fomos entrando.
-Aí Castro, demos sorte!
-É, parece que tem gente. - falei.
  Estávamos entrando devagar no local para não tropeçar em nada, quando de repente paralisei, senti meu sangue gelar. Alguma coisa tinha segurado minha perna.
-A mão! - gritei
-Ahhhh! Onde?! - gritou o Ruéla, também.
  Olhei para baixo e o susto passou. Graças a Deus não era a maldita mão, era apenas um bêbado mocosado no quintal do Tiago Saci.
-Você tem uns trocados, moço? - falou o bêbado com uma voz meio rouca pra mim.
-P*rra mano, não faz mais isso - falei - hoje você tá com sorte, toma umas moedas. - o maldito nem me agradeceu. Então, seguimos até o fundo.
-Chama ele lá - falei
  Ruéla começou a bater palmas na frente da porta do casebre. Havia apenas uma luz fraca do lado de fora, com umas mariposas voando em volta e batendo na lâmpada. Quando ele bateu palma pela segunda vez, ouvimos um barulho estranho, parecia um rosnado.
-Ei cara, você ouviu isso? - perguntei
-Sim, de onde veio?
  Nem precisou procurar muito. Tinha um viralata orelhudo saindo das sombras e estava encarando a gente. Tremendo cachorro estranho, conforme ele foi chegando deu para ver melhor.
-Ei Ruéla, torce pra aquilo na boca dele ser sabão.
-P*ta m*rda!
  Maldito cachorro, estava rosnando pra gente com aquela boca espumenta, caindo muita baba, aquilo me embrulhou o estômago. E os olhos, vermelhos que nem olho de cara chapado, parecia o fogo do inferno... ele rosnava sem nem ao menos mexer a mandíbula nem nada, parecia que o rosnado vinha na sua mente por ondas psíquicas! Sinistro.
 -Cara, você é louco. Olha pra onde você trouxe a gente, na minha casa estávamos mais seguros! - falei.
  Nisso a porta à nossa frente se abriu. Primeiro saiu uma tremenda neblina, mas logo saquei o que era; exatamente o mesmo cheiro que vinha na janela do meu quarto às 5 da manhã: era neblina jamaicana!
-Qualé. - Era Tiago Saci.
  Vendo a figura, você já entende o motivo do apelido. Uma carapuça de saci compridona com as cores do reggae, e andava meio manco. O cabelo não dava pra compreender se eram dreads ou falta de shampoo mesmo.
-Ô Saci, dá uma mão aí, teu cachorro tá querendo me morder. - falou Ruéla
-Esse cachorro não é meu não, carinha.
-Droga. - falei. - de quem é então?
-Fica tranquilo, o dono dele tá aqui. - e virou-se para dentro - Chega aí, Jack.
  O Tiago Saci desencostou a barrigona peluda do portal deu espaço para  passar uma figura franzina e baixinha. Eu conheço esse cara, é o Jack da Granja.
  Você deve estar estranhando porque tantos apelidos compostos, Marquinho Ruéla, Tiago Saci, Jack da Granja, mão é? Mas não ligue, é normal aqui por essas bandas, a galera é bizarra, eu acho que estou entre os mais normais. Jack da Granja, segundo o que ouvi falar, tem esse apelido porque ele tinha mania de assaltar o uns galinheiros por aí. Dizem também as más línguas que ele fazia "certas coisas" com as galinhas, mas acho que são apenas boatos, sabe como é, né?
-Jack, fala pro teu cachorro se acalmar aí. Não to querendo ir para o pronto socorro hoje não. - falei.
  Ele ficou apenas me encarando com a boca aberta e os olhos vidrados, paradão. Então o Tiago Saci estalou o dedo na frente da cara dele.
-Passa, réques - ele disse apenas isso. O cachorro recuou 2 passos, parou de rosnar e desapareceu nas sombras, tipo o mestre dos magos. Sinistro.
-Mas aí carinhas, me digam - começou a falar o Saci - o que lhes traz ao meu humilde lar?
-Sabe o que é, Saci - comecei a explicar - estou com um problemão então vou direto ao ponto. Minha casa começou a ser assombrada por uma parada muito sinistra. É mão saindo do ralo, cabeça na privada... tô sabendo que você pode me ajudar.
-Hmmm - pôs a mão no queixo - isso tá com cara de trabalho em cima de você.
-Eu Sabia - exclamou Ruéla.
-Eu senti a vibração! - Continuou o Tiago Saci. - Mas, se você pagar um agradinho pro Sacizão aqui, eu posso te ajudar, afinal temos que sobreviver não é?
-Que tipo de agradinho? - perguntei.
-Vamos ter que comprar os materiais necessários para o trabalho de limpeza da sua residência, carinha!
-Quais seriam? - perguntei
-Vamos chegar ali no bar do gordo e comprar umas 6 garrafas de pinga, 2 quilos de carne e 3 sacos de sal grosso, isso deve resolver.
  Isso está me parecendo mais uma lista de churrasco. Esse cara deve estar querendo filar às minhas custas
-Mas pra quê tudo isso? pra quê carne? Tudo isso de pinga? Sal?!
-Que isso carinha, só tô pedindo uma pinguinha de agrado pra mim, o resto é pro trabalho! O espírito tem fome carinha, se ele não comer a carne, vai acabar te comendo... e o sal, o sal faz milagres com esse tipo de exú, nunca viu sobrenatural não, carinha?
-Vi, vi sim... tudo bem, vai.
   Melhor gastar um pouco de dinheiro do que passar de novo aquele sufoco lá em casa.
-Bora Jack, você vai ser meu assistente nesse trampo. - O cara não respondeu nada, apenas ficou olhando para o Saci com aqueles olhos estáticos, boca meio aberta. Esse cara não deve ter forças nem pra falar de tão desnutrido que está, só pode.
  O Tiago Saci entrou para dentro da casa dele, vestiu uma camisa do flamengo e saiu com a gente. Fomos para um bar ali perto. Quando entramos,  ficou aquele bando de cachaceiro encarando, mas beleza, saímos inteiros de lá. As sacolas das compras sobraram para mim e para o Ruéla carregarmos. O Saci é malandro, só pegou uma garrafa para carregar... carregar no fígado. Ele foi bebendo, o safado. Já o Jack da Granja, acho que ele não aguenta carregar nem o próprio peso, então nem dei nada pra ele carregar.
  O caminho de volta obviamente foi a mesma distância da ida, mas com aquelas figuras ao lado parecia não ter mais fim. Engraçado sentir pressa de chegar em uma casa assombrada, acho que estou ficando meio pirado, só pode. Tiago Saci começou a contar umas histórias sem nexo de woodstock e não sei o que mais. Sei lá se ele é dessa época, o cara é tão acabado que não da pra ter uma noção exata da sua idade, se eu fosse chutar, diria que foi tio do tutancâmon. Agora não sei quem é pior, o Tiago ou o Ruéla, que ficava falando com o Jack da Granja sem parar, e o cara só olhando sem expressão para ele, com os olhos vidrados. Levar essas figuras pra casa, capaz de baixar a polícia lá pensando que virou boca de fumo.
  Chegando em frente de minha casa o Saci começo a fazer umas caretas estranhas.
-Uff! Olha isso aqui ó - Mostrou o braço direito arrepiado, apontando com o dedo indicador e o resto dos dedos segurando a garrafa de cachaça. - Ali em frente o bicho também pega - e apontou pra casa da cafetina louca.
-Você sentiu alguma coisa lá? - perguntei.
-Não. Tá vendo aqueles trecos que parecem filtros do sonho pendurados na varanda?
-Sei. - falei
-É Vodu.
  Só me faltava essa, uma velha voduzenta lá deixando coisas estranhas na porta de casa. Tudo começa a realmente fazer sentido, só pode ser isso. Mas porque ela tava deixando aquelas coisas na porta de casa? Que eu saiba eu não tinha falado nada de mais para ela antes, nem tinha visto ela direito sequer. Estranho, muito estranho.
-Bom, chegamos. Agora o bicho pega. - disse Ruéla. Pela primeira vez o Jack da Granja mudou a expressão, parecia perturbado.
-Ei Jack, porque você anda tão calado assim cara? Tá na nóia? Que eu me lembre você sempre falou bastante. - perguntei.
-Ih, carinha - me interrompeu, o Tiago Saci - Agora ele virou um Zumbi.
-Zumbi?! - Perguntamos eu e o Ruéla ao mesmo tempo.
-É, um Zumbi. - e deu uma bolada na garrafa - Outro dia ele tava tão bêbado que pensou que o cachorro dele fosse uma mulher e acabou beijando ele na boca.
-Eca. - falei. - aquele cachorro louco precisa ser tratado mano, aquilo lá é hidrofobia.
-Pois é, carinha - ele continuou a falar - eu bem que tentei levar ele no pronto socorro, mas o doidinho morre de medo de injeção...
-E o que aconteceu? - perguntei.
-Tive que transformar ele em um zumbi pra não morrer, carinha. Agora ele é meu zumbi de estimação.
-Zumbi como? - perguntou Ruéla - foi infectado com T-Vírus? Hahaha.
-O que é isso carinha? - perguntou o Saci. - Eu fiz um trampo com ervas especiais nele, carinhas!
-Nada não. Esquece.
-Ei, chega de papo, comadres - falei - estou congelando aqui fora, vamos logo. - Se der papo pra esse cara vamos ficar ouvindo coisas bizarras aqui até o amanhecer.
  A casa da cafetina em frente tava bombando de mano na frente, como sempre. Velha miserável, me paga... em uma horas dessas eu podia estar curtindo a festa à fantasia que está rolando no clube, mas não, se eu for pra lá, quando eu voltar cansado vou ter que encarar o mãozinha podre me assombrando, ai não dá.
  Abri o portão da frente, entramos e olhamos para cima em direção ao segundo andar e um trovão cruzou os céus anunciando um possível temporal. Um vento passou balançando os arbustos no quintal. Pareceu até filme. Sinistrasso!
-Mal presságio, carinhas. - falou Tiago Saci. Eu olhei para o rosto de cada um e segui em frente.
  Abri a porta da sala. Todos entramos, estava todo mundo estava em silêncio nesse momento, ouvia-se apenas algumas vozes ao fundo vindo da casa da velha cafetina, o vento estava ficando cada vez mais forte e vez ou outra se ouvia um trovão... cada vez se aproximando mais de nós.
  Acendi a luz e olhei para cada canto. Tudo parecia quieto lá dentro. Fui entrando e deixei as sacolas em cima da mesa da cozinha, seguido pelo Ruéla. Voltei até a sala, e quando eu ia fechar a porta, ouvi um barulho estranho e dei um pulo. Ai percebi de onde vinha o barulho, o maldito cachorro raivoso do Jack da Granja tava dentro do meu quintal. Como que esse bicho surgiu ali? E aquele rosnado dele sem nem ao menos  mexer 1 milímetro da boca. Só podem ser as ondas psíquicas, eu tô ligado!
-P*rra Saci, o cachorro do teu zumbi tá no meu quintal, dá um jeito nisso. - falei
-Esse cão é de alta periculosidade, carinha! - Falou ele - deixa ele quieto.
-Que seja - falei, trancando a porta na cara do cachorro - depois quando vocês saírem por favor tirem essa porcaria de cachorro do meu quintal.
-Castrinho meu chapa, você precisa acalmar as vibrações! - Falou o Saci.
-Eu vou acalmar quando minha casa estiver livre dessa parada louca.
-Ei, Saci. - começou a falar o Ruéla - Dá um chego aqui no banheiro. É onde estava aquele fantasma na privada.
  Fomos todos juntos indo no rumo do banheiro, menos o Jack da Granja zumbificado que ficou parado na cozinha que nem um dois de paus. O Saci foi primeiro, abriu a porta do banheiro e foi até a privada. Ergueu a tampa e tapo o nariz.
-Nossa carinha, você tem um problema sério aqui mesmo, e é de diarreia!
  Cheguei mais perto e olhei bem, a privada estava detonada de tanta m*rda, tinha m*rda espirrada até na parede atrás.
-Caramba Ruéla, que estrago você fez nesse banheiro mano! - falei.
-Deve ter sido aquele lanche - usou como desculpa - estava meio estranho.
-Sei o estranho, desde pequeno você faz isso quando tá nervoso, lembra no jardim de infância? Até interditaram o banheiro. Haha! - O Saci riu junto, com aquela boca faltando metade dos dentes. Ele já estava meio "alto" de tanto tomar cachaça, então vai rir de qualquer coisa.
  Estávamos entretidos com a conversa quando ouvimos um barulho vindo da cozinha. Saímos do banheiro e viramos o corredor para nos deparar com uma cena estranha. O Jack da Granja estava com uma expressão totalmente diferente, seus olhos estavam estalados e estava tremendo.
-Ai Saci, teu zumbi tá com defeito, haha. Tu não deve ter feito o serviço direito, seja lá o que fez com ele. - falou Ruéla.
-Ei, cadê a carne, carinhas? - perguntou saci.
  Foi aí que notamos, em cima da mesa estava só as garrafas de cachaça e o sal grosso.
-Zumbi safado, foi você que pegou? - continuou saci.
-Ei, tá vendo que ele está estranhão, ele não saiu do lugar. - falei.
-É carinha, faz sentido. - e deu uma cheirada do ar - de onde vem esse cheiro?
-É de lá de cima. - falou Ruéla. E nesse instante a luz deu umas piscadas rápidas. O chão tremeu com um trovão forte, esse deve ter sido perto.
-Chega de bobeira, vamos logo resolver isso antes de amanhecer o dia - hehe, agora pareci f*da e corajoso, mas estou quase me c*gando de medo na realidade.
 Começamos a subir a escada e ouvi atrás um barulho igual de mudo quando quer falar, tipo um "hummmm!!!" viramos para trás para ver o que era, e nos assustamos. O Jack da Granja estava de ponta-cabeça grudado na parede.
-Mas que... - Não deu nem tempo de eu continuar a frase, um rosto escuro sinistro saiu da parede acima do pé do Jack. Senti um choque gelado na barriga quando vi.
-Pega o sal! - gritou o saci. Agora quero ver quem vai ser o corajoso a descer a escada e ficar frente à frente com aquela coisa.
  Um olhou para a cara do outro, mas ninguém desceu. Então a coisa desapareceu de volta na parede, soltando o Jack da Granja que caiu igual a um saco de batatas no chão. Puf!
 -Vocês viram isso, carinhas? Loucura! - Tiago Saci estava com cara de espanto - Já vi carinha receber entidade e tocar o terror, mas isso aqui tá em outro nível!
-O que você quer dizer com isso? -perguntei - Que você também não sabe como resolver, é isso?
-Não carinha - mudou novamente para aquela expressão de calmo-chapado - serviço dado é serviço cumprido. Mas vai custar só mais uma garrafinha, sabe como é?
  Acho que estou sendo explorado. Daqui a pouco ele vai ver a porcaria da mão e vai querer levar minha geladeira embora, querem apostar quanto?
 O vento do lado de fora ficava mais forte, dava pra ouvir o barulho de dentro. Os trovões também se tornavam mais constantes.
-Ei vamos no seu quarto, foi no teu banheiro que a parada começou, não é? - disse Ruéla. Apenas acenei com a cabeça.
  Chegando lá acendi a luz, entramos e eu me joguei na cama. Sei que a coisa está feia, mas esse dia já tinha sido demais para mim.
-Ei, cadê a minha mochila? - perguntou Ruéla. - Ela não estava em cima da cama? onde você enfiou ela?
-Caramba, eu estava com você. Por um acaso você viu eu mexer naquela porcaria? - Parando pra pensar, ela estava em cima da cama onde eu me deitei, a ultima vez que eu a vi.
-Droga, tua casa tá assombrada pelo Simão, o fantasma ladrão! - Disse Ruéla indignado.
  Olhei para a porta do quarto para o corredor e tomei um susto, a luz de lá piscou e tinha uma figura sombria na porta. Dessa vez, ainda bem, não era nenhum espectro e sim o Jack da Granja.
-Ei Tiago, cadê você? - falando nisso, onde foi o dono do zumbi?
-Aqui, carinha -  a voz vinha do banheiro. Ruéla foi até lá, ainda resmungando de sua mochila. Levantei-me e fui até lá conferir.
-Ei saci, fala pra esse teu zumbi se movimentar, ele tá sinistrão ali na porta. - Quando cheguei no banheiro, estava aquele cheiro de podre básico. Aquilo invadiu minhas narinas e quase me fez ter ânsias de vômito.
-Caraca, esse cheiro incurtiu aqui - falei.
-Carinha.... eu sei qual o teu problema! - disse o Tiago Saci.
-Qual? - falamos eu e Ruéla juntos.
-Sua casa está assombrada! - Não me diga, cara.
-Disso eu já sabia, foi só por isso que eu topei te chamar - falei. - quero dizer, por isso eu resolvi consultar um especialista!
-Carinha, esse filho da puta roubou a minha carne! - falou ele.
-Mas não era pra atrair o espírito faminto? - perguntei.
-Era carinha, mas sabe como que é, saco vazio não para em pé - falou passando a mão na barriga - e tem os 30 por cento do empresário aqui, sacas?
  Eu já imaginava alguma coisa assim. Nessa cidade só tem cara malandro, sério. Mas de qualquer forma, se ele realmente resolver o problema eu até compro 10 quilos de carne pra ele.
-E eu quero minha mochila. - falou Ruela se agachando para procurar debaixo da cama.
-Pelo menos, acho que nada meu foi furtado. - falei.
-A gente vem pra ajudar e ainda se f*de - falou Ruéla. Eu ri.
  O Tiago Saci estava agachado olhando para o ralo do chuveiro, apenas observando.
-Sinto más energias vindo dos canos, carinhas, essa parada tá muito sinistra!
-E como vamos resolver isso? - perguntei.
-Seguinte, isso tá com cara de trabalho feito. - prosseguiu o Saci - E pelo que sinto tá vindo lá de baixo. Vamos ter que remover a paradinha louca que causa isso e jogar em um rio.
-Como assim lá em baixo? - perguntei novamente.
-Simples carinha, eles vêm do esgoto! - falou ele.
  Novamente caiu um trovão, mais perto ainda e estremeceu a banheiro. Eu falo que isso está parecendo filme. Tipo um clichê, bem na hora que você fala algo: Bum!
-Certo, mas como vamos resolver isso? - perguntou Ruéla. Ele parecia mais curioso que eu.
-Carinha, vamos precisar do sal grosso e de lanternas potentes. Você tem lanternas aí, Castrinho meu chapa? - perguntou Saci.
 -Acho que deve ter na garagem. - falei.
-Eu só quero minha mochila de volta... - resmungava ainda o Ruéla, que catou a barrinha de ferro que estava no chão do quarto, a mesma que acertou no próprio pé.
 Saímos do quarto e o Jack da Granja ainda estava lá parado. Esse cara já está me dando arrepios, tá muito estranho mesmo, gente. Depois que o Tiago Saci saiu, ele foi atrás dele igual à um cachorrinho. Será que rola mesmo essa parada de zumbi? que lance bizarro.
  Chegando no andar de baixo, pegamos o sal grosso na mesa da cozinha, o Tiago Saci pegou outra garrafa de cachaça e mais uma vez abriu ela e começou a dar goladas no gargalo. Depois fomos para fora, em direção à oficininha no fundo da garagem, onde eu penso estarem as lanternas do meu pai. Quando saímos de casa, pude perceber como estava forte o vento, tive que por o braço na frente dos olhos para não entrar ciscos que o vento trazia. De repente, enquanto virávamos a esquina do quintal de casa, um telha caiu com tudo ao lado do Ruéla.
-Caramba, carinha, você viu isso? - Nisso um relâmpago assustou todo mundo, menos o Jack da Granja - quase que essa telha falece o Ruélinha. - disse Tiago Saci.
-Caramba Castro, vocês compraram uma casa podre, né? - disse Ruéla.
  Então, não sei por qual razão, decidi olhar para cima, em direção de onde provavelmente caiu a telha. Foi aí que tomei um tremendo susto. Tinha um vulto no alto do telhado, olhando para mim com aqueles olhos brilhantes iguais os de gatos.
-Ahhh! - gritei.
-O que foi? - Perguntou Ruéla, olhando para cima também e dando um pulo quando também percebeu a figura. Após isso, o que quer que tenha sido lá em cima, apenas se escondeu de nossas vistas.
-Vo-você viu aquilo? - perguntou o Ruéla. Eu apenas acenei com a cabeça, boquiaberto.
-O que, carinha? - perguntou o Tiago Saci.
-Tinha alguém lá em cima! - o Ruéla falou.
-Carinha, eles já perceberam o que a gente vai fazer, tá ligado - e deu um gole na garrafa - melhor se apressar se não a coisa vai ficar feia!
-Feia como? - perguntei, engolindo seco.
-Se você bobear, a próxima telha vai ser na sua cabecinha - disse Saci. Apenas encarei o Ruéla, ele estava com os olhos esbugalhados de medo. Depois disso, me afastei um pouco do rumo do telhado, e fui acompanhado pelo resto do pessoal.
-Mas aí, Saci - perguntei - o que vamos fazer com sal grosso e lanternas?
-Carinha, o sal grosso vai ser pra gente se proteger das paradas, tá ligado? E as lanternas é pra gente enxergar o caminho.
-Que caminho? - perguntou Ruéla, na minha frente.
-Do esgoto, oras! - respondeu ele.
-Quê?! - falamos juntos, eu e Ruéla.
-Paciência, galerinha. - falou o Saci, após dar outra golada na garrafa - tem paradas na vida que a gente tem que fazer, porque se não, as paradinhas não ficam feitas, tais ligados? - Acho que a cachaça tá fazendo efeito nele.
-P*rra velho, mas esgoto? Fala sério. - reclamei. Nisso um grito horrível vindo do alto da casa pôde ser ouvido, mesmo com o barulho do vento forte. Todo mundo se assustou com o grito, mas felizmente já estávamos na porta da oficina. Pus a chave rapidamente embaixo e levantei a porta de enrolar. Acendi a luz, e pude ver uma lanterna daquelas bem potentes em cima do balcão abaixo do quadro de ferramentas.
-Ae carinha, tinha até me esquecido. Vai precisar também de uma barra de aço ou um pé de cabra para abrir a tampa do bueiro! - Disse o Saci. Quando ele falou do esgoto eu ainda não tinha parado para pensar direito. Putz, entrar em um bueiro? Pesadelo total.
-Pô, Tiago, tem certeza disso? Aquilo lá deve estar cheio de merda da rua inteira. - falei.
-Caraca, tá louco de entrar num negócio desses? Se minha mãe descobrir ela me mata! - completou Ruéla.
-Carinhas, carinhas. Quem fez o trabalho também teve que entrar no esgoto. Então, temos que tirar de lá! - disse Saci.
-Mas que.... - m*rda, pensei, mas não falei.
-É isso, ou conviver com aquelas paradas loucas, carinhas - disse o Saci - mais hora, menos hora elas vão querer levar alguém embora. - Engoli seco.
-Então, Castro -disse Ruéla - Foi muito bom te conhecer, prezo muito sua amizade, mas vou indo nessa.
-Que isso carinha, não vai que você vai levar coisa junto! - disse Saci, e imediatamente o Ruéla brecou.
-Como é que é? - perguntou o Ruéla.
-Você teve contato com aquela coisa que eu sei - prosseguiu Saci - você está emanando muitos fluídos negativos, tem que descarregar isso!
  Ruéla acabou concordando em ajudar, e eu... bom, que escolha tenho eu? Melhor se apressar e resolver, mesmo que tenha que tomar um banho bem tomado e tomar uma injeção ou outra, mas pelo menos vou estar à salvo.O Tiago deu as coisas pro Jack da Granja carregar, haviam além daquela, mais 2 lanternas menores, e também encontrei um pé de cabra. Achei que o zumbizinho fosse desmontar carregando tudo aquilo, haha. Desliguei a luz e fechei a porta novamente. Saímos correndo para a frente de casa, pois o temporal se aproximava cada vez mais, e além disso, tinha aquela coisa no telhado. Ao sair na rua, olhei para a casa da cafetina maldita dos infernos, não tinha ninguém na frente, também pudera, além da tempestade à caminho, já devia ser muito tarde. Andamos um pouco para o lado da rua e encontramos a tampa do bueiro, bem no meio da rua, abaixo de uma grande árvore. Como não tinha uma pessoa sequer na rua, facilitou para nós o serviço.
-Bom, galerinha, é isso! Agora mãos à obra! - disse Tiago Saci.

Cara, fala sério. Até uma semana atrás eu estava curtindo umas festinhas maneiras, bebendo umas e outras na faixa, curtindo um camarote vip.. e agora vou literalmente descer pelo esgoto. Vocês imaginam o quanto de sujeira, estrume, lombrigas selvagens, morcegos, jacarés e sei lá mais o que deve morar em um lugar como esses? F*da.
-Quem vai primeiro? - perguntei.
-Vai você, carinha. - Disse Tiago Saci, após dar uma tchucada na garrafa de cachaça. Que filh* da p*ta, justo eu?
-Ei, vai você, que é o sabidão das urucubacas. - falei. Enquanto isso o Ruéla começava a abrir a tampa do esgoto com o pé de cabra. Quem passa pela rua todos os dias não deve perceber, mas aquela tampa parece pesar uma tonelada quando levantada!
-Aaahhhh! - gritou Ruéla. Quando ele removeu a tampa para o lado, saiu umas "trocentas" baratas de lá.
-Caraca velho, olhe onde você quer enfiar a gente - falei.
-Ai carinhas, sugiro ir logo ou vamos nadar na m*rda. - disse Tiago Saci apontando para o lado de onde vinham os relâmpagos. Em seguida ele acendeu uma lanterna que Jack da Granja estava segurando e pôs de volta na mão dele.
-Vai zumbi! - disse Saci. E não é que ele foi mesmo? Ele é tão magrelo que passou que nem uma bala no buraco. Todos olhamos para baixo, vendo uma leve claridade vinda da lanterna. Depois disso o Ruéla desceu, e em seguida foi minha vez. Confesso que não foi nada agradável, conforme fui descendo, o cheiro que já estava ruim, foi piorando. Para piorar mais, o esgoto não se parecia em nada com o que se vê nos filmes. Deve ser porque é esgoto brasileiro, é muito mais apertado, eu quase estava tendo um ataque claustrofóbico, e além de tudo, tinha de me agachar. Mal podíamos enxergar, mesmo com as lanternas.
-Caramba - disse Ruéla, causando eco - isso aqui fede pra c*ralho.
-Carinhas, é por ali, sinto as vibrações! - disse Tiago Saci. Confesso que meu sedentarismo não estava ajudando em nada, ficar inclinado estava me dando dor nas costas, preparo físico zero.
  E quando parecia que essa história já ia de mal à pior, a desgraça ficou completa. Aconteceu algo que nem passava pelas nossas cabeças a possibilidade de ocorrer. Ouvimos um barulho de algo pesado arrastando, ecoou pelo esgoto, e de repente tudo ficou mais escuro ainda. Alguém pôs de volta a tampa.
-Ei! p*rra, não fecha não! - Ruéla passou por mim igual à um jato, e já estava no alto da escadinha, tentando erguer a tampa. Mas ela não parecia mover-se nem um milímetro para cima. Quem quer que tenha feito isso, sabia muito bem o que estava fazendo. Quem será? Droga.
-Aí carinha, relaxa - disse Tiago Saci - tem muitas outras tampas por aí, tais ligado? - Bem, pensando por esse lado, não estamos "tão" ferrados assim.
  O Jack da Granja estava na nossa frente, mudo e estranhão como sempre. Eu ouço um barulho estranho perto de mim e me assusto.
-O Fantasma! - gritei. O Ruéla apontou a lanterna ao mesmo tempo que eu, para ver o que era. Era o maldito cachorro do Jack da Granja.
-Mano, como essa porcaria de cachorro veio parar aqui? Ele teleporta também, é? - falei indignado.
-Deve ter algum lugar aberto por onde ele entrou, não me lembro de ter visto ele entrar com a gente. - disse Ruéla. A última vez que vi ele foi no quintal de casa, bicho muito estranho.
  Senti algo molhado. Eca, era o nível da água do esgoto subindo, ela estava tocando nos nossos pés.
-Vamos logo, a água podre tá subindo. - falei.
-Que merda, é mesmo. - Disse Ruéla. Tiago Saci empurrou o Jack da Granja que estava mortão à sua frente.
  Fomos seguindo pelo caminho indicado por Tiago, fizemos uma curva à esquerda e eu fui iluminando a nossa frente com a lanterna. Jack, apesar de estar com a melhor lanterna, só iluminava para baixo, então eu fui iluminando o alto, para não correr o risco de bater a cabeça em algo estranho (leia-se imundo). Iluminei algo brilhante, pareciam olhos, paralisei. Eram morcegos, senti-me aliviado, e continuei a seguir Tiago que estava em minha frente. À frente de Tiago Saci estava o Jack da Granja, iluminando o caminho, e atrás de mim seguia o Ruéla, se cagando de medo e reclamando sem parar. Passou por nós uma ratazana tão grande que pensei ser o mestre splinter. Baratas nem se fala, tinham por todo lado. Quem vive tranquilo em sua casa mal pode imaginar a quantidade incontável de baratas que moram abaixo de seus pés.
  Percebe algo movimentar à nossa frente, imediatamente miro a lanterna em sua direção. Havia algo estranho no teto mais à frente. Andamos mais um pouco para conseguir enxergar melhor o que era, mas quando compreendi o que era, pensei ser melhor ter ficado para trás. Um esqueleto podrão estava grudado no alto, parecia mais um cadáver em decomposição. Como ele foi parar grudado no alto como se fosse o homem aranha? Mistério.
-Caraca, velho, isso tá cada vez mais parecido com sobrenatural! - Falou o Ruéla. Tiago brecou e segurou o Jack da Granja pela gola da camiseta.
-Ei, carinhas, isso aqui não tá certo não! - e virou a garrafa de cachaça de ponta cabeça para comprovar que tinha mesmo acabado. Isso nos distraiu tempo o suficiente, de forma que quando voltamos à olhar para cima não havia mais nada. Agora a p*rra ficou séria.
-Nossa, vamos sair logo daqui, mano! - gritou Ruéla, já desesperado. Confesso que nessa hora eu estava pensando a mesma coisa. Abrimos o saco de sal grosso e cada um pegou um punhado. Eu enfiei sal até nos bolsos.
-Ai, carinha, eu estava enganado. - disse Tiago Saci - não foi trabalho isso aqui não!
-Então foi o quê?! - perguntei enquanto corríamos em outra direção procurando por uma saída.
-Lembra, daquela lenda urbana do bêbado que perdeu a carteira no bueiro? - perguntou ele. Eu e Ruéla respondemos positivamente - Foi aqui que ele veio parar, carinha!

  Para você que está perdido(a) com essa lenda, ela surgiu à uns dois ou três anos atrás. Comentava-se que um homem muito agressivo, que saía revoltado do serviço em uma usina que tem aqui, e ia para o bar encher a cara até altas horas. Depois, ele voltava para casa mais doidão ainda e descontava sua ira em cima de sua esposa e filhos, ele descia a porrada neles. Até que em um fatídico dia chuvoso, ele derrubou sua carteira no meio fio. A enxurrada então, acabou carregando sua carteira para dentro de um bueiro. O bêbado indignado vai atrás da carteira e se enfia para dentro do bueiro procurando por ela, outro bêbado amigo dele tentou ir lá para ajuda-lo mas acabou sumindo junto. Depois disso ninguém mais nenhum dos dois. Dizem que eles morreram no esgoto, mas ninguém achou nada e ficou tudo apenas no burburinho. Mas pô, mas vieram justamente parar aqui?! Que b*sta de sorte, meu.
-Carinha, o único jeito vai ser encontrar a carteira dele! - disse Tiago Saci. Acho que ele está certo, o problema vai ser realizar essa tarefa com essas malditas assombrações em nosso encalço.
-Castro, eu tive uma ideia - disse Ruéla -Se eles estão assombrando a sua casa, pode ser que a carteira que o fantasma perdeu tenha ido parar perto do esgoto de sua casa. - Para mim, esse raciocínio fez muito sentido.
-E se não for o defunto do bêbado? -  perguntei - e se for trabalho de mandinga mesmo?
-Vai por mim, carinha - disse Tiago Saci, que estava andando rápido, arcado e mancando. - to sentindo as vibrações, to sentindo as vibrações!
-Sei bem que tipo de vibrações você está sentindo - falei irritado - não foi você mesmo que falou que era culpa de um trabalho, e agora muda de ideia!
-É que eu não tinha calibrado direito os canais! - respondeu ele. Sei bem quais canais. Não tinha era calibrado o fígado com álcool. Mas fazer o quê, é isso ou nada, melhor tentar alguma coisa, e torcer que seja a opção correta. Apesar de estar andando meio agachados, andamos um bom pedaço nesse meio tempo. Estava escorregadio, a água suja já estava alcançando os tornozelos. Jack da Granja todo zumbificado, estava quase ficando para trás, se fôssemos amigos da onça, ele estaria mais ferrado do que já está.
  Logo à nossa frente, encontramos algo estranho em uma das paredes do esgoto, parecia um buraco, parte da água do esgoto estava escoando para lá. Estávamos tão assustados com a situação que nem tinha parado para perceber o quão fétido estava aquele lugar. Não era exatamente cheiro de m*rda, mas um cheiro ranço, bem desagradável.
  Iluminando o local, a fresta parecia-se com uma erosão na parte quebrada da parede do esgoto, ou algo do tipo.
-Pra onde isso vai dar? - perguntou Ruéla. Jack da Granja deu de ombros, todo mundo olhou pra ele espantado, pela primeira vez ele estava reagindo "como gente".
-Ai Tiago, o efeito "zumbi" está passando. - falei e ri, mesmo não estando no clima de achar graça em coisa alguma.
-Não há mal que perdure, carinha! - respondeu ele. - Tomara, pensei comigo.
-Vamos descobrir para onde isso leva. - falei. Seguimos pela fresta, mas o que parecia uma boa ideia, mostrou-se uma grande furada. Estava uma mistura de água de esgoto com barro e mais sei-lá-o-quê. Aposto que deveria ter até m*rda lá.
-Droga! - gritou Ruéla, erguendo uma das pernas. Estava faltando alguma coisa, e era o seu tênis, que havia ficado enterrado no fundo lamacento. Enquanto ele reclamava, podemos ouvir um berro sinistro vindo atrás de nós.
-Corre, doido! - falei. Parecia haver uma leve iluminação vindo à nossa frente. Corri adiante o mais rápido que pude, o chão parecia segurar os meus pés, e conforme eu corria, espirrava aquela maldita água suja em meu corpo e até em meu rosto.
  Chegando ao final do caminho, parecia haver um buraco acima. Olhando para ele, era possível ver os clarões dos relâmpagos acima. Aleluia, a superfície. Olhei para trás e iluminei os demais: estava todo mundo, até o Jack da Granja e o cachorro dele que some e aparece do nada. O rosto de todos tinham pequenos espirrados de lama do esgoto, prevejo pessoas no hospital em breve.
  Algo pareceu passar rapidamente na frente da fresta do esgoto, não deu tempo de iluminar com a lanterna para ver o que era, mas eu já fazia alguma ideia do que se tratava: problema.
-Vaza, carinhas! - gritou Tiago. Depois disso ele deu umas bufadas e fez uns tiques muito estranhos, eu hein. Agora não dá pra voltar mais, então só nos resta a saída do buraco. Subi na beirada do barranco de terra à frente e comecei a cavar com as mãos. Meus dedos doíam com a terra entrando embaixo das unhas. O Saci estava cada vez mais estranho e isso estava me deixando nervoso, um zumbi, um louco, um cachorro raivoso e fantasmas demoníacos atrás de mim, oh vida.
  O desespero misturado com o medo realiza milagres na vida de uma pessoa, eu parecia uma toupeira nata, quando menos percebi já estava saindo de lá. Quem visse essa cena, com toda certeza iria se assustar: um cara saindo da terra todo sujo, literalmente um zumbi de verdade. Não como o Jack da Granja, esse aí não mete medo em ninguém.
  Saí ao lado de uma moita,  parecia ser o quintal de alguém, capaz de a pessoa ouvir os barulhos e ligar para a polícia, ou pior ainda, se tiver algum cachorro lá.
-Ai, ai, ai! - reclamava Tiago Saci, o último à passar pelo buraco. Sua barrigona ficou entalada, tivemos que puxar ele.
-Segura com força! - disse, Ruéla.
-Ahh, carinha ele me pegou! tá mordendo o meu pé! - gritou Tiago Saci. Puxamos ele com mais força ainda, até que ele desentalou e saiu com o barrigão todo ralado. Realmente ele estava sendo mordido, mas não era fantasma nenhum, era um ratão. Hahaha.
-Que porcaria cara, você vai pegar uma lectospirose! - disse o Ruéla.
-É leptospirose, seu burro - eu disse. Iluminei o buraco de onde saímos. Tudo escuro, então de repente aparecem olhos pelo buraco, e eu pulo para trás de susto.
-P*rra velho, vamos sumir daqui! - falei - Já não sei mais o que fazer, como que vou para minha casa?! Não resolvemos em nada o problema.
-Falando em casa... - disse Ruéla - essa aqui não é a sua?
  Iluminei ao redor com a lanterna, e ele estava certo. Estávamos nos fundos do quintal de minha casa, tudo começou a fazer sentido: o esgoto, a assombração, a minha casa. Uni as peças do quebra-cabeça.
-Carinha, preciso de outra garrafa. - suspirou Tiago Saci. Eu sabia que esse cara era uma furada, mas não sabia que iria ser tão inútil assim. Só bebe e não exorciza nada.
-Como vamos resolver isso agora? Minha casa tá possuída por espíritos cachaceiros dos infernos. - reclamei.
-Pô cara - disse Ruéla - você tá ferrado mesmo.
-A, vá. - respondi.
  Jack da Granja estava paradão lá, e já não estava mais com a lanterna na mão. Pra variar esse arrombado perdeu a lanterna do meu pai, só to tomando prejuízo hoje. Iluminei ele com a minha lanterna e notei que perto dele estava aquele maldito cachorro raivoso dos infernos. Nem vi esse maldito saindo do buraco, eu falo que esse cachorro é sobrenatural, sério.
-Ei, o que é isso na boca dele? - Ruéla perguntou.
-É Raiva - respondi - esse cachorro tá louco.
-Não isso, eu falo sobre aquilo que ele está mordendo. - Ruéla respondeu. Iluminei com a lanterna e tinha realmente algo. Tiago foi chegar perto e o cachorro começou a emitir novamente aquele rosnado do além. Sinistro.
-Zumbi. - disse Tiago - manda ele soltar essa coisa!
-Réques - disse Jack da Granja, sua voz já parecia mais "normal" do que antes - larga!
  O maldito cachorro soltou, e eis que era uma carteira toda podrona.
-A carteira do defunto! - gritamos juntos. Nesse momento senti-me animado novamente. Afinal, a sorte parecia sorrir novamente para mim.
-Queima essa m*rda! - gritei.
-Não carinha, vai piorar. Isso vai revoltar o espírito e aprisionar ele aqui. - respondeu Tiago Saci - Temos que libertar.
-Libertar como? - Ruéla respondeu - pra mim isso funciona é na base do sal e fogo.
-Tem que jogar no rio. O rio leva tudo embora pro mar, carinhas! - Tiago Saci disse.
-Estamos esperando o quê? - falei.
  Bom, lá fomos nós. Todos sujos de lama de esgoto, e fedendo pra c*ralho. No final das contas o temporal ficou só na ameaça, pelo menos na rua de casa não choveu nada. Fomos caminhando até chegar no rio e nos livrarmos da maldita carteira.
-Adeus, agora me deixe em paz - Eu disse, assim que Tiago jogou a carteira no rio. Que coisa, parei pra pensar em tudo que havia ocorrido. Os caras morreram no esgoto, tudo bem que diziam que um era mal e tals, o outro eu não sei, mas deve ter sido horrível isso, não é a toa que viraram assombrações. O dia começou a clarear, estava tremendamente frio, uma leve neblina corria sobre o rio.
-Você acha que agora vai ficar tudo bem? - perguntei.
-Vai sim, carinha. Eles foram em paz. - respondeu Tiago. Jack da Granja fez um sinal de joia, eu sorri.
  Fomos até a minha casa novamente, as poucas pessoas que encontravam a gente na rua à essa hora, desviavam para o outro lado. Um pouco por medo e outro pouco pelo nosso fedor, eu acho. Tiago pegou o que sobrou de pinga e foi embora me cobrando novamente as carnes que sumiram. Talvez um dia eu pague elas, mas por enquanto deixa assim, afinal ele não fez praticamente nada. Ruéla tomou um banho em minha casa e vazou embora. Depois desse dia voltamos a manter mais contato, como tínhamos antigamente. Quanto à minha casa, parecia estar normal, nada de mãos nem nada. O cheiro de podre também foi embora, inclusive o meu cheiro de podre, após um banho caprichado.
  Você deve estar curioso(a) para saber em qual parte se encaixa a cafetina loucona do outro lado da rua. Eu perguntei para o Tiago o que era aquilo que ela deixou em frente à minha casa. Parece que ela estava querendo levar uma chinelada na barata cascuda dela. Eu hein, ou era pra mim, ou pro meu pai. Tomara que seja pro velho, haha! Aqueles trecos vodu na frente da casa dela era pra proteção, parece que os Gasparzinhos do bar também andaram assombrando as outras casas da vizinhança. Quanto à identidade de quem tapou o bueiro, isso ficou no mistério. Talvez uma pessoa, ou então foram os fantasmas, ou até mesmo um anjo, por que não? Se não fosse por isso, não teríamos encontrado a carteira.
  Após alguns meses, acabamos nos mudando para outra casa, nessa mesma cidade. Minha mãe botou na cabeça que a casa em frente era uma boca de fumo, de tanto que ela via mano entrando e saindo de lá, e também devido às fofocas da vizinhança. Outra coisa que ajudou também, foi ela ter visto alguns manos que ficavam lá de olho em minha irmã, haha. Agora estou morando mais perto do Ruéla, estou fazendo faculdade de direito e seguindo a vida numa boa, sem nenhuma assombração do além saindo do meu banheiro. Confesso que meu interesse pelo sobrenatural foi despertado, antes eu não acreditava muito nessas coisas. Tudo bem que eu tinha medo, mas era mais um respeito mesmo. Medo respeitoso.
  Enfim galera, pode parecer muito bizarro tudo isso que aconteceu, mas eu lhes digo: a realidade é mais bizarra que a ficção, isso eu garanto. Fiquem suaves e se forem mudar para outra casa, tomem muito cuidado. À propósito, ainda estou solteiro.

FIM

Autor:  night
Capa  john doe via flickr